Desacato


PRIMEIRO ATO

O tipo tinha pouco mais de vinte anos. Altura média, barba rala e o perfil inequívoco de quem nos causa repulsa, sem um motivo definido. Além dos atributos anteriores, era titular de uma subserviência tal, que igual eu nunca imaginara. Certo dia, nas famosas reuniões de acerto de expediente, ouvi-o dizer:
- vocês gritaram?
- vocês pularam de alegria
?
Não, ninguém tinha ficado tão feliz quanto ele; ou melhor, alguns disseram que sim. Mas era notório que mentiam. Afinal, o que lhe dera tanta alegria foi o fato da empresa em que trabalhávamos ter vencido uma pendenga judicial e, consequentemente, estar liberada para trabalhar. Poderia continuar a vender anúncios em listas telefônicas.
E o gajo, que chamarei de R., continuou por muito tempo a bradar, num fervor quase religioso. Além das mostras de amor pela Empresa, não se cansava de repetir:
- eu, com vinte e poucos anos já sou gerente. Ouviram? Gerente!
Era-lhe a glória máxima.
Noutra reunião, na mesma empresa, um dos Supervisores, subordinado ao R., para demonstrar o seu apego, fez um pequeno corte no dedo e misturou o pouco sangue que escorreu com as folhas da bendita Lista. Junto ao gesto, fez a seguinte narrativa:
- vejam! O meu sangue é amarelo!
O de seus subordinados não era.

SEGUNDO ATO

Também era alto e magro, como R., mas dono de uma dentição em péssimo estado. Certo dia proclamou:
- o melhor do mundo é a minha empresa. Não admito que alguém fale mal.
- foi ela que criou os meus filhos. . .
A este, chamarei de E. 

TERCEIRO ATO

Em todas as ocasiões ouvi-os calado. Sabia-lhes a covardia de entregarem o que deveriam ter de dignidade, em favor da segurança (sic) que a subserviência lhes garantiria. Outros animais do rebanho baliam em favor destes testemunhos ao deus da sobrevivência. É útil ser covarde. Também fui. Nada disse.
Por quê? Barro moldável, de péssima qualidade; manuseado pelos ditos da moda, dos modismos e dos autos e pseudo sacrifícios. E estes são apenas alguns deste triste rebanho. Sempre apto a seguir o tinir do sino da ovelha madrinha. A mesma, que por receber menos lambadas dos senhores, lambe suas botas enquanto açula os demais. As ovelhas que lhe são inferiores. E estas, aguilhoadas pelas ovelhas madrinhas – que chamarei de capataz, ou encarregado, ou gerente, ou supervisor ou o raio-que-o parta – torcem pelo estrago menor e se regojizam com qualquer regalo que lhes é concedido, desde que as normas, abaixo, sejam seguidas:
 
• Mantenham as cabeças abaixadas.
• Trabalhem o máximo e o melhor possível, mesmo que tal trabalho lhes seja absolutamente distante e indiferente.
• Cuidem de suas famílias, a célula mater da nossa feliz sociedade.
• Procriem. Abasteçam as novas vagas que o futuro há de trazer.
• Não queiram. Suas recompensas não são deste mundo. 

Porém, por generosidade dos Senhores, vislumbres do Paraíso vindouro serão concedidos àqueles que o merecerem. Saibam todos que oferecerão:
 
• Bons pastos.
• A 1ª delicia: churrasco e cerveja.
• A 2ª delicia: épocas festivas. Mesmo que em tais festas ocorram brigas de familiares embriagados e empanturrados pela 1ª delicia. Ou, talvez, por serem ovelhas ressentidas.
• A 3ª delicia: todos poderão assistir televisão e terão direito de falarem: caiu em depressão, a nível de. . . e. . . enquanto pessoa.
• A 4ª delicia: terão direito a livros de auto-ajuda e, depois de lê-los, sentirem-se cultos.
• Por fim, a Suprema Delicia: poderão ir à praia. Mas, em ocasiões especiais. Exceto o rebanho litorâneo.

QUARTO ATO

Em outra estrada, o caminhão de gado segue para a fazenda. Mas enquanto isto, os bois e suas vacas fazem de seus rebentos, os bezerros, novos bois e novas vacas que trabalharão até não mais poder. Depois, todos serão retalhados e virarão os churrascos, conforme foi referido no ato acima. Mas isto, assim dito, fica parecendo muito cruel. Na realidade, antes de serem degolados, nas folgas dos trabalhos (que ninguém é de ferro), eles podem comemorar as suas vitórias (sic), chorar as desgraças alheias, fazer suas pequenas e bem intencionadas intrigas e, mais importante, sonhar com o estábulo próprio e com o carro (de boi?) mais novo. Alguns, até se gabam e dizem “. . .estou partindo para o segundo carro da família. . .” Se ele soubesse como isto desperta a inveja no seu cunhado . . . e as brigas nas festas familiares, hein? A sogra e a nora fulminando-se com olhares, palavras duras. Aquele outro cunhado que não têm inveja, mas que bebe até não conseguir ruminar mais nada. 

Oh, como tudo isto é lindo!

                                                                  DESACATO

                                                Eu não sei se devo mugir, ou balir . . .