Um grande brasileiro

Quem visita em Santos Dumont, Minas Gerais, a pequena localidade de Cabangu tem a oportunidade de conhecer a casa, transformada em museu, em que veio ao mundo o mais célebre inventor brasileiro. A casa está lá, pintada de branco, como no tempo em que o menino, filho de Francisca Santos Dumont e do engenheiro Henrique Dumont, nasceu em 1873. Quem anda por lá fica sabendo, com as dóceis recepcionistas, detalhes dessa biografia, que tanto honra os brasileiros.

Quem até lá se dirige, na tranquilidade da Mantiqueira, pode também visitar o memorial, em que fotos e instrumentos da epopeia do cientista brasileiro são exibidos, para que as gerações futuras não se esqueçam daquele homem pequeno, que se fez grande aos olhos de Paris e do mundo.

No memorial, lê-se em francês, bem como na respectiva tradução portuguesa, a missiva que Santos Dumont enviou a Afrânio de Melo Franco, embaixador do Brasil junto à Sociedade das Nações, manifestando sua preocupação com o uso de aviões como arma de guerra. Corria o ano de 1926. O mundo já vivera os horrores da Primeira Guerra, e o nosso cientista, pioneiro da conquista dos ares, se sentia culpado com o emprego do avião como máquina mortífera de guerra.

Na coleção A Vida dos Grandes Brasileiros, publicada pela Editora Três, o biógrafo Francisco Pereira da Silva, em volume dedicado a Alberto Santos Dumont, reproduz a carta, em que o mineiro ilustre se mostra disposto a oferecer em concurso dez mil francos para "o melhor trabalho sobre a interdição das máquinas aéreas, como arma de combate e bombardeio". Que ironia do destino! Nos seus sonhos, o avião uniria os povos, facilitando-lhes a vida na Terra... Doía-lhe a ele, homem sensível, que se condoía dos insetos, preservando-lhes a vida, ver seu invento a serviço do mal. E como homem sensível e utópico vislumbra um prêmio a ser custeado por ele mesmo.

Justamente ele, que em 1901, conquistara os cem mil francos do prêmio Deutsch por ter contornado a torre Eiffel, com seu dirigível, e voltado ao ponto inicial, se via agora, como um visionário da paz, tentando se retratar de um bem que não fizera só bem! Justamente ele, um homem desprendido, que dividira o prêmio recebido com os pobres de Paris e com seus mecânicos e operários, se via agora à mercê de sua tristeza e desencanto!

Quem lê a biografia da Editora Três caminha, romanescamente, nessa epopeia daquele que viajou em balões e em dirigíveis e fez o mais pesado que o ar voar; quem lê a biografia caminha na epopeia daquele que exibiu as cores de nossa bandeira nos céus franceses e fez flutuar na longa flâmula de sua aeronave o verso camoniano "por mares nunca dantes navegados", diante da culta França deslumbrada.

Os leitores de Francisco Pereira da Silva certamente vão comparar a epopeia de Santos Dumont com as façanhas de nossos ídolos modernos, tão amplamente divulgadas pela mídia. Vivesse Santos Dumont a época da tevê, a julgar pelo tratamento de herói recebido quando visitava o seu Brasil, provavelmente ele seria imbatível na admiração de seu povo.

Passei por Cabangu, ligeiramente; li o texto da Editora Três, apenas sensivelmente... Vi a carta de Santos Dumont, a doce ingenuidade do gênio; ela está lá na recolhida Cabangu e nas páginas da bela biografia, que celebra também o caráter, a vocação para escrever e o amor ao semelhante, que tanto marcaram a trajetória de Santos Dumont. Emociona saber que a um repórter francês, por ocasião de um acidente com um dirigível, o inventor assim se manifesta: "O castigo mais terrível que Deus me poderia infligir seria o de não amar os meus semelhantes". E o ficamos imaginando, se Deus eloquência lhe tivesse dado, a disseminar mundo afora a paz e a confraternização.

Mas o "petit", como era conhecido entre os franceses, era de poucas falas. Ninguém deu ouvidos ao gênio, e os engenhos humanos continuam sendo usados para o mal. São os pecados da "ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos ares!", como tão bem captou a sensível poesia de nossa Cecília Meireles.

Voltemos à carta do "petit Santôs"... O invento, como os filhos, àquela altura era do mundo, e nada mais poderia ser feito. E se o inventor tivesse usado a imprensa, tivesse tido espaço permanente em todos os jornais do mundo, para falar do seu sonho, dos seus sonhos de integração e união dos povos? E se hoje a mídia, que tanto alardeia os "espetáculos" belicistas, cedesse igual espaço aos pacifistas de nossos tempos? Talvez, se assim fosse, a humanidade encontrasse um destino mais harmonioso. Santos Dumont é certamente um bom exemplo dessa boa luta! (Texto escrito em 2004)