DA NÉVOA DO TEMPO
 
Abre-se o livro da vida e, na página aleatoriamente mostrada, vê-se um menino com um grande cesto à cabeça, contendo legumes, verduras e frutas.
Para junto a um grande portão de ferro, finamente trabalhado, ladeado por altos portais de granito, tendo acima duas pinhas de louça.
Arria o pesado cesto e, mais uma vez, fica admirando a grossa muralha de pedra que se estende do portão até bem longe. O paredão é encimado por um gradil baixo de ferro e por quatro belos e enormes canhões de bronze, que apontam para a distante entrada da Baia de Guanabara.
Extasiado, como sempre, se vê alí em cima, peitoral de aço, espada em riste, dando a ordem de "Fogo" contra os incautos invasores que tentam adentrar a baia!
Volta à realidade o garoto, torna a colocar o cesto sobre a rodilha de pano que traz sobre a cabeça, abre cuidadosamente o portão e toma o caminho de pedra, em leve aclive, que some à primeira  curva.
 
A trilha, que divide a mata, vai mostrando o vasto pomar da propriedade, que se estende por, pelo menos, dois quarteirões. Vai com receio da possibilidade de ser surpreendido pelos dois enormes cães-pastores alemães, que, para ele, tem porte de cavalos e com a mania de surgirem do nada! 
Sua tarefa é entregar as compras feitas na quitanda do seu tio, português carrancudo e bom de cascudo e o menino acredita que o pessoal da chácara já tenha enjaulado as duas feras, mas, de qualquer forma "é bom ficar de olho".
 
De repente, a vereda abre-se em grande clareira e o garoto novamente para ante aquele cenário já visto em outras oportunidades, mas que, sempre, lhe causa emoção.  Sem saber, ele estava diante de uma tela viva de Rugendas ou Debret e ele percorre com o olhar o grande terreiro.  Lá está a casa grande, colonial autêntica, dupla escadaria levando à porta principal; embaixo a senzala, ocupando toda a extensão da casa ; acima o alpendre, enorme, com gradil de ferro muito elaborado, colunas metálicas suportando o telhado, grandes janelas duplas pintadas de azul e emolduradas por esquadrias em amarelo.
No terreiro, sob uma centenária mangueira, uma grande mesa de madeira serve de apoio para a cozinha; sobre ela são depenadas aves, eviscerados os leitões, lavadas as verduras, descascadas as batatas, batidos os ovos.
Desfilam, como vindas de um sonho, mulatas de turbante, missangas, panos-da- costa, imensas saias brancas rodadas; dois vira-latas fazem seu trabalho diário de infernizar as galinhas, patos e leitões que, volta e meia, cruzam o cenário em disparada.  Dois negrinhos, com calças justas até às canelas, rodam grandes aros de metal por entre toda essa confusão.
Um grande tacho de cobre, sobre fogo de lenha, ferve alguma coisa a um canto. 
 
Segue, instantes depois, para a cozinha - único cômodo que teve a ventura de conhecer - e lá deposita as compras que vinha trazendo e se deleita com o sorriso da gorda mucama, que o esmaga contra seu vasto peito, beija-o e põe-lhe no bolso um monte de guloseimas.  Para ele, ela era, sem dúvida, a tia Nastácia daquele livro que ele já lera um montão de vezes e aquele lugar não poderia ser outro senão o próprio Sítio do Picapau Amarelo.
Levará para sempre a visão daquele maravilhoso fogão à lenha, com tanto brilho dos metais amarelos que lembravam as possantes locomotivas à vapor que já conhecia; do chiado das panelas fervendo e do delicioso cheiro da comida, evocando a distante África, nunca esquecida.
Deixa a cozinha e divisa, ao longe, a temida figura do "seu" Domingos, velho português, muito branco, com rosto e mãos marcadas pelas manchas senís, a quem competia a guarda da propriedade e que, com a ajuda muito respeitável dos dois cachorrões, impedia (ou dificultava) a entrada da garotada no pomar, mas que, muitas e muitas vezes, escondido, continha as duas feras por tempo suficiente para a meninada se deliciar com mangas, sapotís, abius, laranjas, romãs, nêsperas, jabuticabas, carambolas...    
Vai embora o menino, bem calmo agora, e já tirando do bolso uma das iguarias que tia Nastácia lhe dera.
Chega ao portão, abre-o, olha os canhões, a rua, o céu e fecha-o atrás de si.
Com isso fecha-se o livro da vida, onde, sobre a página antes mostrada, nota-se agora a mancha de uma grossa lágrima de enorme saudade, porque esse menino era eu.
 
 
 
 
paulo rego
Enviado por paulo rego em 03/01/2012
Código do texto: T3420116