Gente que não é como a gente

Eu já conheci gente de todo tipo. Da excentricidade à normalidade. Gente do tipo calma, gente do tipo inquieta. Gente que não agüenta o fim de um espetáculo de dança. Gente que se extasia com a arte a ponto de dizer após uma apresentação de três horas: “- Já acabou?”.

Já vi gente salvando bichinhos de estimação de grandes tragédias. Já vi gente maltratando os animais, sem escrúpulo. Já vi gente dar esmola. Já vi gente negar esmola. Já vi gente até negar socorro à gente.

De outro lado, quando penso conhecer de gente, deparo-me com situações inusitadas: gente assim que pensei não existir. Ou só vi na televisão. É gente que não é como a gente.

É meio complexo, mas para esta gente é simples: onde cabe um, cabem todos. Onde o dinheiro aperta, sempre há afeto em abundância. E esta gente anda escondida. Nos becos da vida. Não precisa de holofotes, nem de microfone, nem de recursos. Apenas multiplica-se, assim, do nada, enquanto alguns rasgam suas notas de ouro em coisas caras, mas, no fundo, sem valor. Esta gente é pobre mesmo, sem eufemismos, mas dá a margarina do pão se preciso. Esta gente não é como a gente, que às vezes torce o nariz pra dar um pacote de biscoito pra quem bate à nossa porta. Esta gente põe os que batem à sua porta dentro da própria casa. E não dá só o pacote de biscoito, mas o pão com margarina também. Dá a sua cama quentinha, faz a família se apertar em outro cômodo. Dá também carinho e atenção. Dá a própria família, o próprio tempo, só pra ver o estranho em posição confortável.

Não, definitivamente, esta gente não é como a gente, que reclama toda vez que a gasolina sobe, mas que pelo menos tem um carro. Que torce o nariz quando a mãe traz outra marca (inferior) de azeitonas para casa. A gente não come pão amanhecido. E também não adota crianças em lares adotivos. A gente investe na bolsa. Empresta dinheiro aos parentes. Não dá atenção a estranhos, muito menos os põe dentro de casa. A gente come chocolate fora de época. E não divide com os vizinhos. A gente cria casulos, se emociona ligeiramente, até diz que sente pena. Mas, na verdade, a gente não pratica a compaixão. Não visita quem muito nos espera. Não reparte o tempo em fatias de carinho. A gente não vive no mundo da outra gente. Não compartilha do todo que preenche o vazio de seus bolsos. E a gente ainda acha que é feliz acumulando prêmios.

Mas tudo bem, não somos tão carrascos. Damos esmolas às vezes. Também visitamos orfanatos uma vez por ano. Algumas cestas básicas já distribuímos aos carentes. Já fomos visitar aquele velho tio doente em estágio terminal. Ajudamos vizinhos a recuperar os móveis depois da enchente. E também já demos o melhor prato feito ao senhor que capinou o jardim. Sim, isto é gentileza, solidariedade, compaixão. Mesmo assim, ainda existe gente que não é como a gente. Que leva a solidariedade a sério. Mais sério que o comum. Transforma a compaixão em missão de vida. Eu conheci esta gente de perto. Gente que já possuía uma pessoa deficiente em casa, aliás, humilde casa, mas que adotou mais três crianças, que, a cada uma, faltava um membro do corpo. Fez rampas improvisadas, pediu ajuda para construir um banheiro adequado. O que esta gente quis, não foi mostrar a bondade suprema, mas distribuir o amor e empatia que lhe restavam. E deu amor em excesso. Educou as crianças rejeitadas e as chamou de filho. Quem, nesta mesma situação, já provando de calvário qual não escolheu, ainda assim, escolheria mais dificuldades? Quem, não tendo nada, conseguiu multiplicar e somar o nada ao amor? Esta gente não está preocupada com o preço da gasolina. Mas com o valor que a vida tem. Com que o que pode ser dado, mesmo com sacrifícios, aos que tem menos que o nada. Porque existe esta gente caridosa, dando coisas aos que têm menos que o nada. E o nada com afeto se torna muito. Nesta casa onde habitam quatro pessoas especiais todos sorriem. E ninguém diz que algo ali falta. A dor de um supre a do outro, e divide-se entre os demais. Já a alegria expande-se, serena, resplandecente, sedenta por corações que desejam derreter-se em amor. Se há desentendimentos, estes são passageiros, pois todos não podem fazer nada sozinhos. Uns têm os pés, alguns as mãos. E todos uns aos outros. E depois nós vamos dizer que praticamos o bem. Verdade. Tudo é válido. Mas esta gente não pratica o bem como a gente. Esta gente não vê a compaixão como a gente. Esta gente não é como a gente.

Andrea Sá
Enviado por Andrea Sá em 03/01/2012
Código do texto: T3420208