Mãe Preta

Quando Isabel começou a trabalhar em nossa casa, eu tinha cinco anos de idade e minha irmã do meio, um. Ela não sabia ao certo sua idade, e meu pai providenciou sua certidão de nascimento, que ela não tinha até então, calculando sua idade pela de minha mãe.

Bel ficou com nossa família durante cinqüenta e quatro anos. Participou de todos os acontecimentos alegres e tristes, conservando sempre a humildade que foi sua característica.

Cinco anos depois que ela entrou em nossa casa, nasceu a minha irmã mais nova, que foi sua afilhada.

Bel foi grande companheira de nossas travessuras de criança. Meus pais tinham o hábito de ir ao cinema às segundas-feiras, quando era reprisado o filme de domingo . Bel ficava com a gente, e era muito criativa nas brincadeiras, quando as panelas e tampas de minha mãe transformavam-se em instrumentos musicais, para o desgosto dos vizinhos... Era comum nessas ocasiões, ela fazer-nos rir até urinar ou mesmo defecar nas calças... Depois ela ia para o tanque lavar a sujeira para que minha mãe não ficasse tão brava quando voltasse...

Bel teve alguns namorados, mas o casamento não era a sua vocação. Ela não era boa cozinheira, mas tinha o dom de cuidar bem de crianças. Assim nós três crescemos sendo cuidados por ela.

Depois, fomos estudar fora, eu primeiro, depois minhas irmãs, e ela era sempre a confidente quando vínhamos passar férias e fins de semana em casa.

Quando me casei, ela foi morar conosco durante um ano, para ajudar-nos. Ela alegrava a gente nesses primeiros tempos em que ainda não tínhamos filhos, e estávamos em adaptação à nova vida e a outra cidade. À noite, quando eu voltava do trabalho, dávamos muita risada com as palhaçadas que eu fazia e ela recordava dos tempos de criança. Era como voltar no tempo...

Ela voltou para a casa dos meus pais e a vida continuou. Primeiro casou-se minha irmã mais nova, e depois a do meio. Ela foi morar com a sua afilhada, e ajudou-a na criação dos seus dois filhos, seguindo a sua vocação.

O que sempre me impressionou nessa pessoinha que, no fim da vida tinha um cabelo que era puro algodão, foi a sua humildade, o seu silêncio. Quando ela vinha passear em minha casa, eu tinha que forçá-la a sentar-se à mesa com a gente, pois ela preferia comer na cozinha, dizendo que lá era o seu lugar. Eu dava-lhe uma bronca e dizia que na minha casa ela era visita, e que devia comer com a gente.

Ela era sistemática e tinha lá suas manias. Nos últimos tempos, adoeceu, tinha uma dor abdominal que a deixava desanimada e preocupada, e que, mediante os exames realizados, não revelou nenhuma doença. Depois, seu coração começou a dar problemas.

Sentimental, sensível, chorava de alegria e de tristeza. Maior que seu amor pelas crianças era a paixão pelos animais, principalmente cachorros.

Seu estado de saúde se agravou depois que ela presenciou, horrorizada e impotente, a morte do cachorro de meu sobrinho por um “pitbull”.

Quando a vi pela última vez, voltei preocupado para casa. Ela estava ausente, sentada à beira da cama com um prato de comida na mão. Não reagiu quando lhe dirigi a palavra, parecia já não estar ali...

Uma semana depois, ao voltar da missa, recebi um telefonema de minha irmã, dizendo que a Bel havia falecido. Talvez por obra do destino, nesse dia estavam todos viajando, e por causa de forte chuva, impossibilitados de retornar à cidade, e eu tive que tomar todas as providências para as suas exéquias. Cheguei às 14 horas à cidade onde ela morava , e o enterro estava marcado para as 17. Como eu tive tomar todas as providências, não pude ficar no velório, só chegando na hora de sair o féretro. Mas mesmo não tendo podido velá-la, para ter pelo menos a oportunidade de agradecer diante do seu corpo inerte por tudo que ela fizera por mim e por toda a minha família durante todos esses anos, senti a alegria de ter podido servi-la nessa hora derradeira, proporcionando-lhe em seu último descanso toda a dignidade de que ela foi merecedora.

Para nós ficou o seu exemplo de fidelidade e humildade, que é relembrado sempre que nossa família se reúne, principalmente por ocasião do Natal, quando sentimos mais falta de sua presença silenciosa.

Dia sete de janeiro é aniversário da Bel.

Hermes Falleiros

Franca, 03 de janeiro de 2012.