O menino Jurandi Assis.

Extraído do Jornal ComércioHoje de Santa Maria da Vitória

27/04/2010 Redacao,rio corrente,guarany 544 menino Jurandi Assis. Por Cristóvão J.Z. Wieliczka

A história começa no município de Santa Maria da Vitória, à beira do rio Corrente, no agreste sertão baiano.

Era o ano de 1939, no finalzinho do mês de março, numa tardinha quente, na praça central, na porta do cartório, um imponente e velho sobrado.

Pela janela da sala de entrada via-se o vermelhão do poente, contrastando com o azul do céu que provocava um cenário maravilhoso e um reflexo encantador nas águas aparentemente mansas do rio.

Ao longe, no horizonte distante, os campos e os morros confundiam-se na mistura das cores do dia que ia morrendo.

O sino da igreja matriz em frente ao cartório bateu seis vezes.

Era a hora mágica, a hora da Ave Maria.

Dentro do cartório, um burburinho. Registrava-se o nascimento de uma criança do sexo masculino.

Era Jurandi Queiros Assis. Filho de família razoavelmente abastada e numerosa.

Descendente de avós espanhóis e pais brasileiros.

O tempo passava e Jurandi saiu do colo da mãe e do berço, aprendeu a andar e aprendeu a falar.

O tempo passava e o menino crescia no meio das tradições, folclore e costumes locais. Era um Brasil rústico, um Brasil distante, um Brasil quase perdido no mundo. O tempo avançava.

Aos seis anos Jurandi ganhou do seu pai um tinteiro de cristal. Não era um brinquedo, era um tinteiro. Naquela época molhava-se a pena da caneta na tinta para escrever.

O tempo passava e, como toda criança, Jurandi foi à escola. Jurandi teve seus cadernos, livros, régua, borracha, lápis preto, caixa de lápis de cor e blocos de papel.

Jurandi começou a apreender as coisas, começou a ler, começou a escrever e começou a desenhar.

Jurandi era um menino muito esperto e curioso, e descobriu que aquela cidadezinha à beira do rio, apesar de quase perdida no mundo, era cheia de atrações, cheia de movimento.

Sua própria casa era grande e rodeada por um enorme quintal. Uma verdadeira chácara para os padrões atuais.

Ao seu redor brincavam as crianças da vizinhança soltando pipas. Também trabalhavam e circulavam os vaqueiros, os cavaleiros, os lenhadores, as pilandeiras, enfim, gente do campo. Jurandi depois da escola ficava às vezes na varanda da cozinha da sua casa por horas vendo e desenhando as crianças a brincar. Com lápis e papel na mão, Jurandi traçava suas linhas. Linhas retas, linhas curvas, traços fortes, traços fracos. Sombras.

Pronto, mais um desenho estava pronto: Meninos soltando pipas.

Jurandi guardava seus desenhos numa grande pasta amarela, presente de sua avó.

O tempo passava.

Dia após dia, de segunda à sexta-feira, Jurandi ia à escola. Jurandi estudava.

Jurandi desenhava.

Jurandi brincava, mas também observava tudo o que acontecia.

Havia freqüentemente nas tardes um vai e vem de animais e carros de boi passando pela cidade.

No rio Corrente transitavam os pescadores com seus barcos ostentando imponentes carrancas do mestre Guarany.(*)

De manhãzinha viam-se as lavadeiras na beira do rio, e à noitinha homens com baldes iam buscar água.

Barco novo atracado no cais era curiosidade geral. Toda cidade ia ver.

A cidadezinha estava sempre em movimento. Por todos os cantos havia gente, adultos e crianças.

Na pracinha as crianças costumavam jogar bola.

Na ladeira, ao lado de sua casa, um grupinho vivia a correr atrás de aros.

Na beira do rio uma turminha jogava bolinha de gude e brincava com as jandaias.

Nas ruas, as baianas com seus tabuleiros vendiam doces, flores e frutas.

Pelos bares da cidade, músicos tocavam e cantavam.

Nos armazéns homens e mulheres compravam e vendiam.

Aos domingos surgiam dos arredores os violeiros e o padre rezava a santa missa na igrejinha matriz.

Quando era festa de dia-santo ou alguém morria, lá se iam as infindáveis procissões, ora em torno da praça central, ora direto para o cemitério.

Vez ou outra passava pela cidade um grupo de retirantes dirigindo-se para o sul. Todo mundo ficava olhando e pensando qual seria o destino deles.

Pois é, movimento era que não faltava.

Jurandi desenhava todas essas figuras.

Às vezes, como já foi dito, Jurandi ficava na varanda da sua casa desenhando, outras vezes saia a desenhar pela cidade, ora na beira do rio Corrente, ora no campo, longe de casa, levando sempre consigo seu material de desenho.

Lápis, borracha, papel e prancheta.

O tempo passava.

E ano após ano que passava, Jurandi estudava e desenhava.

Todos na cidade gostavam e pediam seus desenhos.

Jurandi passou a ficar famoso numa cidadezinha muito pequena.

Num certo momento, despertou em Jurandi a vocação para ser artista. Jurandi cresceu.

Jurandi estava moço quando descobriu que, para realizar o seu sonho de ser artista, não podia mais ficar em Santa Maria da Vitória, pois a cidadezinha era pequena demais.

Jurandi tomou uma decisão. Ir para São Paulo. Um novo mundo. Uma grande aventura de vida o esperava.

Jurandi aos dezessete anos saiu de sua cidade natal, deixando todos os parentes e amigos de infância.

Na viagem de muitas peripécias Jurandi levou pouca bagagem, muita saudade e imagens na memória.

Imagens dos vaqueiros, dos cavaleiros, dos lenhadores, das pilandeiras, da gente do campo, das lavadeiras, dos pescadores, dos barcos, das carrancas do rio Corrente, dos meninos soltando pipas, dos meninos correndo atrás dos aros, dos meninos jogando bola, das crianças jogando bolinha de gude e brincando com as jandaias, das floristas, das baianas com seus tabuleiros vendendo doces e frutas, do homem do realejo, das cenas de carnaval, dos retirantes, do bumba-meu-boi, dos violeiros, das tradições. Enfim, imagens de tudo o que vira e vivera até então.

Era o ano de 1956 quando Jurandi chegou em São Paulo.

Um susto. O tamanho da cidade.

Em São Paulo Jurandi se hospedou numa pensão perto do centro.

Saia a toda hora para conhecer a cidade e à procura do seu primeiro emprego. Finalmente achou, começou como office boy. Depois foi balconista e em seguida auxiliar de escritório.

Sempre desenhando nas horas de folga as imagens que lhe ficaram na memória.

Fez novos relacionamentos e através de um amigo engajou-se numa empresa para ser desenhista.

Nessa empresa progrediu e também foi se profissionalizando.

Uma novidade. Jurandi, agora, além de desenhar começou a pintar. Não mais somente lápis e papel faziam parte da sua vida, mas também as tintas, as telas, os cavaletes e os pincéis.

Como homem comum, nada lhe foi muito diferente na vida. Jurandi trabalhava.

Jurandi namorou e casou. Jurandi teve filhos. Jurandi comprou sua casa.

E no meio de tudo isso, persistia sempre em desenhar e pintar suas floristas, suas baianas e demais personagens que guardava na memória, lembranças da sua distante Bahia.

O tempo avançava. Jurandi trabalhava dia após dia.

Na década de 1970, Jurandi estreou como artista e iniciou a sua jornada de exposições. Suas obras passaram a ser expostas em importantes galerias e espaços culturais.

Na década de 1980, o leiloeiro Mauro Zuckerman adquiriu de Jurandi centenas de telas. Foi aí que Jurandi Assis ficou conhecido e suas obras foram parar nos quatro cantos do mundo.

Na década de 1990 Jurandi resolveu escrever um livro contando um pouco sobre a sua vida.

Dia e noite, noite e dia, estava lá Jurandi, trabalhando, desenhando, pintando e escrevendo.

Finalmente o livro ficou pronto. Um bonito livro, com muitos desenhos e pinturas.

O livro teve o ensaio crítico de Jacob Klintowicz e levou o título de O inventário do cotidiano.

Foi lançado no ano de 2000, na Casa da Fazenda, no Morumbi, em São Paulo.

Em setembro de 2002 Jurandi conheceu por acaso e muito rapidamente, numa loja, na rua Padre José de Anchieta, quase esquina da rua Antônio Bento, em Santo Amaro, um moço chamado Cristóvão.

Por coincidência, Cristóvão, no Natal daquele ano, recebera de presente, das mãos de Adozinda Kuhlmann, sua conhecida de muitos anos e ilustre santamarense, o livro de Jurandi Assis, O inventário do cotidiano.

Cristóvão se encantou com o livro. Adozinda disse que era amiga de Jurandi, razão do presente de natal. Quanta coincidência.

Cristóvão disse a ela que conhecera Jurandi havia pouco tempo, e como ela o conhecia, perguntou-lhe onde ele morava. Quando Adozinda respondeu, Cristóvão descobriu que Jurandi morava muito perto. Todos moravam em Santo Amaro.

Dias depois Cristóvão tomou uma decisão, foi visitá-lo.

Numa manhã de janeiro, na sala da casa de Jurandi, os dois passaram um bom tempo conversando. Conversaram sobre muitas coisas como o encontro na loja, a infância de Jurandi em Santa Maria da Vitória, o mestre Guarany. Conversaram sobre São Paulo e sobre arte.

Conversaram também sobre o passado do bairro de Santo Amaro, Santo Amaro do poeta Paulo Eiró, Santo Amaro do artista Júlio Guerra, Santo Amaro do historiador Edmundo Zenha. Um Santo Amaro que já não existe mais. Hoje são somente lembranças.

Ao termino do encontro, Jurandi e Cristóvão começaram a ficar muito amigos e, na despedida, Cristóvão perguntou para Jurandi o que ele ia fazer.

Jurandi respondeu:

- Vou pintar um quadro, e você?

Cristóvão respondeu:

- Vou escrever umas linhas.

- Então, quando estiver pronto você me mostra, disse Jurandi.

Tempos depois...

- Taí Jurandi. Taí criançada. Vocês acabaram de ler.

1a. parte: Antes de 25 de março

Coisas da vida. Jurandi Assis nunca quis voltar para a sua terra por conta própria.

Apesar de ter para tanto, recursos de sobra, sempre imaginou um dia ser convidado pela cidade. Dito e feito.Não é que o destino se incumbiu disso!

Em 2009 o município baiano de Santa Maria da Vitória, onde nasceu Jurandi Assis, completa 100 anos.

Não podendo deixar passar em branco tal data, a prefeitura resolveu fazer uma grande festa e homenagear as pessoas ilustres nascidas naquele povoado distante - distante digo para nos que moramos em São Paulo - e que tem nada mais nada menos do que cer ca de 40.000 habitantes.

Tudo começou em fevereiro quando Jurandi recebeu uma ligação telefônica de Santa Maria da Vitória de seu velho conterrâneo Joaquim, que administra a Casa da Cultura, dizendo que o prefeito resolveu em função das datas convidar Jurandi para comemorar seus 70 anos em sua cidade natal.

Jurandi depois de uma longa e emocionada conversa com Joaquim logo em seguida me ligou dando as boas novas. Já não me lembro exatamente o dia do mês de fevereiro que foi, mas sei que foi numa semana que recebemos uma série de boas notícias e esta foi uma delas.

Na conversa com Joaquim, Jurandi impôs a prefeitura uma condição para aceitar o convite, que ele fosse acompanhado de Cloves Teodoro dos Reis, o entrevistador do programa Brasil em Foco e seu cameraman Alexandre Verderano de Souza e eu.

E não é que a prefeitura aceitou!

Pois bem, nesta quarta feira, 18 de março, recebi via e-mail do Joaquim, de lá dessa distante terra baiana, os números do localizador das passagens da Gol.

Avisei meus companheiros de viagem, Jurandi, Cloves e Alexandre.

A expectativa é grande pois não é todo dia que um convite desses aparece.

Embarcaremos de Congonhas para Brasília na manhã do dia 25 de março e de lá seguiremos para a terra de Jurandi numa van. A partir do embarque no taxi que nos levará para Congonhas começarei a relatar o início desta aventura. Me aguardem pois a 2a. parte será bem longa.

2a. Parte: De 25 a 30 de março 2009

Acompanhado de seus amigos, Jurandi chegou a Santa Maria da Vitória na noite de 25 de março. Foi calorosamente recebido pelos representantes do povo e dezenas de pessoas. No dia seguinte uma verdadeira delegação da prefeitura o acompanhou numa maratona de visitas por escolas públicas e estabelecimentos de saúde onde fez palestras e foi sempre calorosamente aplaudido. Recebeu inúmeros presentes e muitos jovens e crianças lhe renderam homenagens através de canções e poesias. Foi recebido pelo prefeito e pela Câmara Municipal. Em sua homenagem a Câmara Municipal lhe concedeu uma placa e foi condecorado com uma medalha de "Honra ao Mérito Artístico" por seu talento e obra, medalha Francisco Biquiba Lafuente Guarany pelo seu exemplo de um homem simples do interior da Bahia, que por sua determinação venceu na vida e se tornou um exemplo para todos os Santamarienses. Jurandi durante a sua permanência em Santa Maria da Vitória teve a oportunidade de rever velhos amigos de infância e dar boas e saudosas gargalhadas.

Visitou uma tia muito querida e sua família e matou saudades indescritíveis. No dia de seu aniversário teve uma imensa fotografia sua exposta na fachada do antigo paço Municipal. Bolos de aniversário e parabenizações é o que não faltou. Durante dias a cidade toda estava em festa. Por onde Jurandi passava era cumprimentado e abraçado.

Fotografias suas foram tiradas mais de mil e deu autografos de quase cansar a mão. Durante o dia todo recebeu ligações telefônicas de seus familiares e parentes distantes, tanto de São Paulo, como de seu primo de Salvador.

Na noite de domingo, 29 de março, véspera da viagem de retorno a São Paulo um ar de saudade foi tomando conta de Jurandi. Jantou com sua equipe pela última vez à beira do rio Corrente e estendeu aquela noite o máxi mo que pode pois quem saberia dizer quando novamente retornaria a Santa Maria da Vitória. Deixou a cidade na manhã de segunda feira com a tradicional fibra de um baiano valente.

Estávamos no veículo que nos levava a Brasília para de lá tomar um avião para São Paulo, quando numa rua de onde ainda se avistava o rio Corrente percebi uma lágrima escorrendo pelo rosto de Jurandi. Seria uma lágrima provocada pelo vento ou pela emoção do momento. Não sei, mas que para Jurandi Assis, sua comitiva, e para todo o povo de Santa Maria da Vitória, vivemos momentos únicos e por que não dizer histórico.

lllllllll