Homenagem à Amizade que nunca morre

São 3 horas da manhã. Eis-me aqui diante de seu corpo inerte, praticamente sem vida, só esperando que a energia vital se vá de vez. Estou assustada, tenho medo do que será minha vida sem a sua amizade, suas risadas, suas críticas, seu humor sarcástico, sua bondade.

Olha para trás e volto no tempo. Me vejo chorando de emoção por ter sido escolhida para ser sua madrinha. Vejo-a no bercinho, no carrinho, uma criança voluntariosa, uma adolescente sensata, uma jovem sofrida que buscava na compulsão por gastar se consolar pelos males da vida. Mas sempre nós duas, juntas, em qualquer circunstância.

Custei a ter coragem para escrever sobre você. Quanto tempo se passou? Amanhã completará seis meses daquela noite trágica. Eu te olhava e não conseguia crer. Parece um pesadelo. Em coma? Falei com você pela manhã. Estava alegre, rindo. Mas já partindo. A noite custa a passar, mas não sei se quero que ela passe. Vigio sua respiração. Tenho medo de que ela cesse.

Ah, nossas viagens, nossas saídas, nossos papos. Como sinto falta! Sempre leal e sincera com os que amava. Mas com imensas angústias interiores mascaradas pelas roupas caras, perfumes franceses, bolsas de grife. Mas ainda era a minha menininha e eu passava a mão em sua cabeça. Não queria que descobrissem, que a fizessem sofrer ainda mais.

Te olho novamente. Ainda respira. Você terá coragem de me deixar? Logo você que sabe dos meus temores, de minhas dores, de minhas tristezas? Já me sinto só e tenho muito medo.

Olho novamente para o tempo pretérito. Meu irmão morto e você chegando. Fiquei emocionada. Pedi que não te levassem, você não estava em condições, mas me disse entre lágrimas: “Achou que eu ia te deixar sozinha numa hora dessas?”. Minha querida a pior dor você não conseguiu me consolar, foi te perder.

Ainda respira. Milagres não acontecem, eu sei. De onde estou tirando forças para estar aqui, sozinha, diante do seu corpo inerte. O mesmo que banhei quando bebê, o mesmo que fiz curativos quando a maldita doença veio minar suas forças.

Lembro-me de sua compaixão para com a decepção que tive. A dor da traição numa hora tão imprópria. Mas você estava ali e isso me consolava. Eu ainda tinha você e chorava no quarto o medo de te perder.

Lembro-me de nós duas na Barra de Guaratiba, em pleno verão carioca. Meu Deus, o que fiz? Você é tão madura que me esqueci que ainda é uma criança e tão branquinha. Deixei-a na praia à vontade. A corrida para o médico. Queimaduras.

Olho novamente para o corpo já tão sem vida. Não é você, não pode ser. Cadê sua vida? Cadê seu sorriso, cadê sua voz?

Vejo uma linda festa. Eu e você de branco, roupas feitas do mesmo tecido e rendas francesas. Nossa festa! Doces finos, bolo, muitas pessoas. Minha primeira comunhão e seu batizado. Foi a nossa festa! A maior de todas que tivemos. Duas primas, duas amigas, duas irmãs, duas almas companheiras.

E este corpo, meu Deus? O que faço? Será que ela me ouvirá? Vou ao seu ouvido e sussurro: pode ir, vá em paz, ficaremos bem. Quanta mentira naquelas palavras. Vontade de gritar: NÃO VÁ, POR FAVOR. EU PRECISO DE VOCÊ!

Criança ainda você entrava em meu quarto e criticava a bagunça, se pondo a arrumar minhas coisas. Tudo ali era seu também. Dividíamos tudo. Você era sagrada para mim.

A dor de saber de sua doença. Não pode ser. Não, ela não!

A promessa diante do caixão de sua mãe. Vá em paz, tia, eu cuido de sua filha como se fosse minha. E a partir dali você passou a ser um problema meu, responsabilidade minha. Eu fazia tudo por você. Ria e brincava para fazê-la rir. Mas meu coração sangrava por dentro e eu ia para o lado externo da casa e chorava rios de lágrimas. Tanto medo. Tanta responsabilidade. Tanta dor.

Nesses seis anos e meio estivemos ligadas pelo cordão invisível da fatalidade. Uma sempre estava perto da outra, falando com a outra, rindo com a outra. Amigas? Mais do que isso: irmãs. Eu te dizia a frase do Mário Quintana: “A amizade é um amor que nunca morre”. Esse foi o nosso lema. Era com essa frase que nos consolávamos. E foi essa a frase que mandei colocar na coroa de flores que mandei fazer para você. Saiu da vida coroada. Não era uma pessoa qualquer, era você!

Meu Deus, ainda respira? Sim. Vou lá fora fumar um cigarro. Já é quase manhã. A médica chega, examina e me chama: nada há a ser feito, mas ela morrerá com dignidade, faremos de tudo, como se ainda houvesse esperança.

Saio correndo. Filhos, amigos e marido estão lá fora: não há jeito. Não há mais nada a ser feito. Desabei. E ouvi: você sabia que isso ia ter um fim. Saber? O que é saber? O saber está ligado ao cérebro e não ao coração. Esse não queria saber de nada. Ele sentia, ele sofria, ele sangrava.

Retorno ao quarto soturno onde vejo suas forças se minando. Eu fiz de tudo, até pedi que Deus me levasse e salvasse você, que amava a vida. Eu nunca amei essa coisa infame que chamam de vida.

Eu não estava bem e você me ligou chorando: “Você não pode morrer, eu não posso viver sem você, não estou preparada para isso”. E eu? Eu também nunca estive preparada para te perder. E nem sei se ainda estou. E nem sei se há conformidade dentro de mim, se todos os dias me recordo de você.

As horas foram passando. Chegam seu irmão e seu pai. Eles constatam que as pernas estão frias, que você já está partindo. É preciso pegar roupas para vesti-la. Ei, tragam perfume e maquiagem, peço eu.

Olho para você, mas já estou tão dopada e sem nada comer. Somente cigarros e calmantes. Preciso disso para suportar. Eu é que tinha que estar ali, naquele momento, ao seu lado. Mas a energia humana tem seus limites e o meu chegou após quinze horas e meia ao seu lado. Saio do quarto como um autômato. A enfermeira já fora chamada para me substituir. Olho para meus filhos e seus amigos e sinto que vou desmaiar. Estou fraca, cansada, exausta, com medo.

Me levam para casa. Sim, aquela mesma onde brincávamos, fofocávamos, ríamos tanto. Onde passávamos suas férias juntas. Chego, tomo um banho e começo a rezar. A notícia chega: você havia partido. Na hora, ainda cheia de medicamentos, não pensei muito. Mas quando cheguei à cozinha e vi seu irmão e a dor dele, não suportei e perdi os sentidos.

Dormi. Acordo cedo e me ponho a procurar minhas roupas negras. Sim, será como eu sempre brincava com você: A que ficar vai ao enterro da outra toda de preto. Eu cumpri minha promessa. E você estava lá. Linda, nem parecia que esteve doente. Arrumaram você como nós gostaríamos que fosse. Me postei ao seu lado como um cão de guarda. Sim, sua vontade será feita, os que te traíram não conseguirão chegar até perto de você comigo aqui. Não foi o que você me pediu?

Está na hora. Fecharemos o caixão. Eu não suportei, desmaiei. Procurei pelo seu irmão e pedi que não me abandonasse ali, que ficasse perto de mim. Eu ajudei a te levar.

Agora, minha querida Carla, estou aqui, na casa onde crescemos, sozinha, triste, com medo e muita saudade de você. Um dia nos encontraremos. Mário Quintana disse que nunca morre. Então nossos laços sobreviverão, para sempre, não importa onde estaremos no futuro. O importante é estarmos juntas.

Com muito amor e saudade,

Sua melhor amiga e irmã

Em memória de Carla Augusta Tavares Gonçalves

Emar
Enviado por Emar em 15/01/2012
Código do texto: T3442378
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