Demolição.

Uma casa na minha rua está sendo demolida, era velha demais,como tudo nesta vida inclusive pessoas, quando não tem mais utilidade é destruída,substituída...
Se fazemos isso com as pessoas , é mais que normal fazermos com uma casa que não reclama e ninguém repara, ou chama a policia!
Dois homens trabalharam na demolição.Eu acompanhei o trabalho dia a dia.
Primeiro tiraram as telhas,portas janelas,tudo jogados na caçamba que recolhe este tipo de material.A casa era mista, algumas paredes de madeira e outras de alvenaria, as de madeiras tinham  venezianas de madeira e as de alvenaria apenas vitrôs.
O barulho das marretas me deixou curiosa como sempre.
Passando em frente a casa, fiquei parada.Levei um choque.A realidade crua sempre me choca, sou apatetada  pela própria natureza.
Pronto!Comecei a imaginar, tenho raiva de mim mesma por pensar! Queria tanto ser alienada, uma pessoa fria sem um pingo de emoção!
Reconheço que sou “complicada” , que minha cabeça é um nó!Que droga.
 Imediatamente “viajei” parada em frente do que ainda restava da casa.
A parede de madeira do que eu suponho tenha sido sala e a porta principal tinha desaparecido.
Encostado em  outra parede que ainda permanecia em pé,vi um pôster de um menino de mais ou menos um ano segurando uma bola ,sorrindo como só as crianças podem fazer.
Era uma criança bem bonita,o pôster em preto e branco estava descorado, mas perfeito.
Ver aquilo me deixou arrasada!Ainda bem que um dos homens teve a consciência de não jogá-lo fora, cuidadosamente o poupou. Ele estava abandonado, mas integro.
Aquela casa deve ter sido muito feliz, muito desejada por seus donos,agasalhou a família, era um lar,  novinha, com as paredes com aquele cheirinho gostoso de madeira nova,orgulho de seus proprietários.Uma escada dava acesso a porta principal,a casa rodeada de um jardim florido dava impressão de alegria.
Ela vivenciou alegria e tristezas.Certa vez lhe deram um toque de modernismo,acrescentaram alguma alvenaria.
Nela havia com certeza pelo menos uma criança, possivelmente a do pôster, que corria pelo  corredor,batendo portas,jogando bola.
A foto deve ter tido lugar de destaque na parede da sala, o menino devia ser o orgulho de pais, avós ou alguém da família.Na casa reinava vida.
Ahhh, se ela pudesse falar para nos contar o desenrolar da vida ali, mas agora estava morrendo...
Muitas vezes foi “maquiada”,as cores ainda permaneciam umas sobre as outras, a última era bege,mas já havia sido rosa,branca , verde...
A cada batida da marreta, meu coração encolhia de pena, foi necessário que  saísse dalí, para não abrir a boca no mundo a chorar de pena da casa.
Coitadinha devia estar sofrendo com essa morte tão dolorosa sem ninguém de “sua família” para assistir seu fim!
Eu ainda estava  parada em frente dela quando se aproximou de mim um senhor meu conhecido, já bastante idoso,o seu Alcides,ele mora na casa em frente da “casa vitima” a mais de cinqüenta anos.
Adivinha se crivei o homem de perguntas...
Adivinhou!Foi o que fiz.
 Me contou toda a historia daquela família.Ele conhecera o casal, se mudaram recém casados , depois vieram os filhos, dois filhos e uma filha, o mais velho hoje é médico, o outro e a filha são engenheiros.O pôster era do filho da moça, portanto neto de  dona Julia e  seu Afonso.Ele morreu ainda jovem.Os filhos se casaram.Ela permaneceu  sozinha na casa, viveu até noventa anos,quando faleceu, isso se passara a mais de oito anos.
Os filhos não se importaram  com a casa,depois de certo tempo um senhor desconhecido passou a morar no lugar e finalmente também a abandonou a mais ou menos uns três meses.
Comentei com ele sobre o pôster, como eu havia pensado o menino era do neto de dona Julia,  filho da filha dela, seu Alcides conheceu a criança,era o primeiro neto de dona Julia. Ela ficou muito orgulhosa quando recebeu a foto do neto e o chamou para ver...
Seu Alcides então entrou na casa falou com os pedreiros e levou o pôster e mais uma foto  do casamento de dona Julia e seu Afonso.Me disse que iria telefonar para filha dela avisando sobre as fotos.
De fato no dia seguinte telefonou.
Curiosa eu queria saber o desfecho da história.
Qual não foi minha decepção quando ele me disse que a mulher tinha vindo ver as fotos, mas pediu que ele as queimasse por que não queria guardá-las.Ele  mesmo com muita pena acabou queimando tudo!Como ele disse “essa gente moderna, não dá valor a nada!”
Me despedi de seu Alcides, concordando com ele, cabisbaixa e triste me afastei.
Me aproximei mais da casa,peguei a única florzinha que ainda tentava viver naquele abandono, a coloquei sobre os degraus carcomidos, passei com cuidado   a mão no que restou de seu muro, e mentalmente enviei a casa uma mensagem de solidariedade.
”Casinha ferida aceite esta flor, saiba que existe alguém que compartilha sua dor, lembre  que você cumpriu bem sua missão,agora é hora de partir, não fique triste,saiba que alguma parte sua ainda vai ser recebida com alegria  no lar de alguém”.
Fui embora ...
No dia seguinte a caçamba estava quase vazia, alguém levara parte do “lixo”!
Que bom!
 
M.H.P.M.