Um rolé pelas ruas da Ceilândia

Era uma tarde ensolarada de domingo e eu havia prometido levar o Thubin pra conhecer as ruas onde cresci. Ruas da Ceilândia, nas quebradas do P-Sul. Vielas estreitas onde a molecada organizava seus inesquecíveis campeonatos de golzinho e corria atrás de pipa. Era preciso dar a ver uma Ceilândia além das manchetes dos jornais policiais, uma Ceilândia de peladeiros, pipeiros - meninos de rua.

Ali, quantas vezes não topei o dedão do pé em chutes desengonçados contra o asfalto. Topada que podia até doer às vezes, o dedão rasgado, respingando sangue no chão. Mas menino num tem frescuragem não. E fome de bola era maior do que qualquer dor. No mais, engolia-se o choro, tacava-se terra em cima da ferida e seguia em frente, jogando bola até umas horas da noite, quando se atravessava a tarde num pulo. Aí no mais, era meninada jogando beth, biloca, pulando amarelinha, dando rolé de bike, brincando de polícia e ladrão e outras presepadas que se inventa no meio da rua.

Respirando nostalgia, descia aquelas antigas ruas e rememorava algumas histórias vividas ali. Ainda tenho fresco na memória o dia em que disputamos nosso 1º Campeonato de Golzinho valendo uma garrafinha de baré. O primeiro de muitos que haveriam de ter naquelas ruas. Como nenhum de nós poderíamos, naquela época de penúria, bancar um refrigerante sozinho, resolvemos nos organizar através de uma vaquinha e, assim feita, comprar a cobiçada baré. Juntávamos todas as moedinhas que conseguíamos numa sacola e tocávamos pra padaria.

Pra quem não sabe, baré era um refrigerante muito apreciado pela meninada daqueles tempos. Isso em meados da década de 90, 92, 94, por aí.

Como é de se imaginar, as partidas eram bem disputadas. O sol muitas vezes rachando em pleno meio-dia sobre nossas cabeças, resplendia no pára-choque dos carros e dardejava no asfalto. Mas pela baré valia todo sacrifício. Pela baré valia de tudo, chute nas canelas, topada de dedão no asfalto, bicudo, bandão, era uma luta encarniçada de fazer comover o mais frio dos torcedores. Ao vencedor, uma dose geladinha de refrigerante. Ah, a bendita dose dos vencedores!

Acontece que, na maioria das vezes, nem sempre o vencedor bebia sozinho. Acabava que boa parte da molecada acabava rachando, dividindo as doses de baré entre si; cada um dava uma golada e pronto, todo mundo saía feito, refrescado, feliz da vida.

Até hoje me comove essas coisas que fazíamos - a esperteza do menino pobre, seu espírito comunitário. Essa coisa de saber que não tínhamos quase nada, apenas esse espírito de união que nos fazia fortes frente a toda adversidade. Essa esperteza que nos fazia driblar a dureza de nossas vidas - meninos correndo entre vira-latas, descendo ladeiras, subindo muros atrás de pipa, pegando rabeira em caçambas de caminhão. Apesar de tudo, a vida era doce.

Mas foi nessas andanças com Thubin e com o Dunguinha, que presenciamos uma cena que certamente vai perdurar durante muito tempo em nossa memória. Um bando de meninos - a nova geração – como que saídos do meu passado, correndo atrás duma pipa gritavam eufóricos pela rua:

- Voou! Voou!

E lá corriam, aos montes, atrás duma pipa que vinha caindo lentamente do céu. Com os olhos arregalados, acompanhávamos a queda da pipa, caindo ao sabor dos ventos, passando rente entre os fios dos postes, por entre antenas, beirando as grades do portão, definitivamente pousando na mão de dois meninos.

Entre eles uma discussão:

- Ôxi! Solta doido, a pipa é minha!

- Caô, peguei primeiro!

- Num foi não, foi eu!

Entre eles, o mais velho tomou a pipa e sem nada dizer, num gesto brusco e ligeiro, deixou-a aos pedaços.

Boquiabertos, ficamos sem entender, esperando ver no que ia dá aquilo.

Pensa que algum deles reagiu em protesto ou que algum deles rompeu em choros? Pensa que teve trêta? Não, nos explicou o Dunguinha:

- Entre os pipeiros daqui a regra é a seguinte. Logo que começa uma discussão por causa de pipa, deve-se rasgá-la. Doa a quem doer, a regra é clara e num tem choro nem trêta...

E foi o que aconteceu. Rasgada a pipa, nenhuma trêta e nenhum menino resmungando. De repente, ouve-se um novo grito:

- Voou! Voou!

E lá estava, aos olhos espertos da molecada, mais uma pipa solta no céu.

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 24/01/2012
Código do texto: T3458800
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