Improbabilidade Fúnebre

Existe um velho ditado popular que diz: “Quem tem boca vai a Roma.” Eu diria mais: “Quem tem boca vai a Roma, mas quem tem sorte almoça com o Papa.”

Certa ocasião escutei em minha casa uma estória que retrata bem isto. Ela era mais ou menos assim...

Uma senhora da minha cidade que se chamava D.P.E.S. (nos referiremos a ela assim, afim de preservar-lhe a identidade), sofreu uma grave perda em sua família. A sobrinha neta da tia torta da avó da sua madrasta falecera em São Paulo capital.

Em data próxima um motorista chamado C.V.P.L. (o trataremos assim pelos mesmos motivos citados a cima), o qual nos narrou o conto que vos transmito, se dirigiria para a mesma cidade levar a três senhores em um curso de treinamento.

Como os carros populares atuais, com um dos quais C.V.P.L. levaria os três senhores para São Paulo, em sua maioria possuem cinco lugares e quatro desses lugares estavam ocupados, não é difícil concluir matematicamente que, um daqueles lugares que compõem o total de assentos do veículo que se dirigiria para São Paulo, estava vazio.

Por uma daquelas artimanhas do acaso, ao qual alguns preferem chamar de destino, a enlutada senhora D.P.E.S. veio a conhecer o nosso inexperiente motorista.

Utilizo a expressão inexperiente pelo fato de aquela oportunidade ser nada mais nada menos que a primeira vez na qual C.V.P.L. dirigiria em São Paulo. Cidade para a qual o ultimo adjetivo que utilizaríamos para qualificar seu transito é “tranqüilo”, em total oposição a cidade de origem do nosso desafortunado motorista. É lógico que de antemão peço desculpas aos paulistanos que por ventura leiam esse texto, pois se trata de uma conclusão minha que até presente data nunca dirigi em tal cidade, mas tendo em vista os repórteres televisivos que fazem cobertura de transito nesta cidade arrisco-me a tal palpite já que estes, apesar de falarem em suas matérias sobre “transito” palavra para qual a primeiro substantivo associado é “carro” o fazem a bordo de helicópteros.

Mas deixando as divagações filosóficas sobre o transito de São Paulo de lado, voltemos à trama de nossa aventura.

Na oportunidade na qual D.P.E.S conheceu C.V.P.L., esta teve a feliz idéia de comentar com o motorista sobre a lamentável perda de sua família.

Assim como já era esperado, a senhora D.P.E.S, passou a ocupar o lugar vazio do veículo que se dirigiria para São Paulo em data previamente marcada, não pelo senhor C.V.P.L. nem tão pouco pela senhora D.P.E.S., mas pelos três ocupantes até então desconhecidos dos demais assentos.

É lógico que por algum daquelas improbabilidades estatísticas tão comuns em estórias e filmes, a data de tal viagem coincidira com o ultimo dia de velório e conseqüente cremação ou enterro, da sobrinha neta da tia torta da avó da madrasta da senhora D.P.E.S.

Chegada a data de tal viagem se dirigiram para São Paulo, o senhor C.V.P.L., motorista inexperiente, no banco ao seu lado, gentilmente cedido por um dos demais ocupantes, a senhora D.P.E.S., vestida de preto e em pranto, e nos três lugares traseiros três homens sonolentos que seriam treinados em algum lugar ao final daquele percurso, trajando elegantes ternos pretos.

Chegado as proximidades de São Paulo, um dos três homens, que se mantiveram mudos por toda a viagem, não se sabe se por tensão frente a inexperiência do chofer ou se por condolência ao pranto da senhora do banco da frente, entregou ao motorista um mapa que indicava o caminho a ser percorrido pelo auto até um local descrito pela sigla C.L.

A necessidade desse mapa já era um incômodo para o senhor C.V.P.L., já que o guia que o instruíra até ali, diga-se de passagem, comprado em uma banca de revistas, terminava o trajeto previsto em um grande círculo vermelho onde se lia São Paulo.

Dotado de tão preciosa ferramenta o senhor motorista, sem maiores dificuldades uma hora depois deteve a marcha do carro em um pequeno beco onde no mapa podia-se ler C.L.

O local indicado era a parte traseira de um grande prédio que tinha sua frente voltada para o outro lado do quarteirão.

É lógico que só souberam disso quando notaram a ausência de reboque nas paredes do prédio e pela presença de grandes tambores onde se lia “LIXO”.

No meu imaginário, o lugar descrito anteriormente condiz bastante com o que tenho visto em filmes norte-americanos, e foi a partir daí que comecei a duvidar da veracidade de tal ocorrido, mas vale a pena continuar...

Descido os três homens sem nada dizerem, o motorista se dirigiu a enlutada senhora pedindo para que esta o instruísse para que fossem ao tal velório.

A atitude seguinte de D.P.E.S. foi duplamente desesperadora. Ela simplesmente abriu uma pequena bolsa e retirou uma frente de uma caixa de remédio cujo princípio ativo era magnésio e no verso leu, Rua dos Alferes mil quinhentos e doze.

Relutante o motorista fez a seguinte pergunta:

_ A senhora sabe o caminho não?

A resposta daquela senhora não poderia ser mais apavorante:

_Nunca vim a São Paulo!

Depois de um momento de esbabaquismo.

Desculpem a expressão, mas não me ocorreu nenhuma outra que descrevesse melhor um estado de nervos semelhantes. Para os que não compreenderam o significado de tal palavra trata-se de algo intermediário entre assombro e o pânico.

Eles lembraram de uma invenção que se espalhou pelo mundo nos anos noventa e agradeceram a Deus pela dádiva das ondas eletromagnéticas. Ela tinha o celular de alguém que estava no velório e era de São Paulo.

Do outro lado da linha alguém os instruiu a voltar para a avenida que haviam abandonado a pouco e seguirem por ela por uns quinze quilômetros, uma concessionária seria a referencia, fizessem o retorno e aguardassem a passagem do cortejo fúnebre.

Porém o pior ainda estava por vir.

Percorridos mais ou menos dois quilômetros do trecho previsto, o tráfego de veículos começou a se tornar cada vez mais lento, e um número incalculável de carros se acumulava em torno do veículo ao qual o senhor C.V.P.L. conduzia.

Algumas centenas de metros depois o carro estava totalmente parado, atrás de um vã escolar lotada por uma dezena de capetinhas que riam e apontavam para alguma coisa dentro do carro.

Brilhantemente ele deduziu:

_Congestionamento.

Uma seqüência de arrancadas breves e paradas longas se estendeu, por mais quatro quilômetros até que nosso desbravado motorista se viu diante de um homem de corpo esguio e movimentos precisos que supôs ser um policial.

_Senhor, um edifício a frente será implodido em uma hora, os próximos mil metros desta avenida é área considerada de risco, por isso não poderá prosseguir.

E ele continuou:

Se deseja atingir o outro extremo deste perímetro isolado poderá seguir o desvio até a altura da Frederico Machado, seguir por dois quarteirões, virar a esquerda da Aldolfo Pinto, até o entroncamento com Cristiano Albuquerque, siga pela via de acesso a direita se mantenha na faixa da direita até a rua dos Expedicionários entre na primeira bifurcação a direita, passe pelo viaduto o qual terminará nesta mesma avenida. Muito Obrigado pela compreensão.

C.V.P.L atônico conseguiu gaguejar alguma coisa que ainda assim não foi de toda bem sucedida:

_Mas... Seu Guarda...

E logo foi interrompido.

_Desculpe senhor, Soldado Walisson, do exercito brasileira em que posso ajudá-lo.

Penso que o jovem soldado, digo jovem pela patente do mesmo, deveria estar utilizando algo deferente da roupa camuflada característica do exercito. Afinal de contas só isso justificaria tal engano.

_Soldado, sou do interior de Minas e... É... Bem essa é a primeira vez que venho a São Paulo, e as referencias que o senhor me forneceu são tão úteis para mim nesse momento como uma batedeira de bolos.

Bom! Não me questionem sobre tal fala do motorista sou apenas o narrador desses fatos.

Tendo o soldado, percebido o provável pânico evidenciado pelo rosto apavorado do motorista e dotado de um espírito de condescendência mais comum em freiras de hospital do que em militares, falou alguma coisa em seu pequeno comunicador.

Vinte minutos depois estavam do lado oposto a zona de risco, conduzidos por um jipe verde escuro guiado por um soldado que pela sua expressão facial não compartilhava do mesmo espírito caritativo de seu nobre colega. Ou tratava-se de simples revolta pela missão que apesar de nobre, não era igualmente desafiadora.

Em fim chegada a dificultosa concessionária (referencia), fizeram o retorno para o sentido oposto da avenida, que os levaria de volta em direção a zona da implosão, idéia essa que incomodava C.V.P.L., aguardaram pela passagem do féretro.

Depois de alguns minutos de espera, uma sirene chama atenção de nosso motorista para o retrovisor, onde se podia ver uma moto com a escrita “PMSP”.

Surge então um segundo homem, que logo se apresentou:

_Policial Paulo! Posso saber o que estão fazendo parados em cima da faixa de pedestres?

Como uma das características principais, de nosso caro motorista era “inexperiência” este pequeno, mas caro detalhe lhe passou desapercebido.

Por respeito às autoridades, respeito esse que julgava não só importante como também indispensável para a conservação da boa índole de um mineiro que se preze, nada respondeu.

O guarda continuou, já anotando alguma coisa em sua pequena prancheta de mão:

_Então vocês são de Minas?

Esta talvez tenha sido a pergunta redentora. Já que a resposta apesar de inoportuna, não provinda do motorista, que ainda mantinha sua postura silenciosa, mas da senhora que o acompanhava, os livrou pelo menos naquele momento de desconfortos maiores.

D.P.E.S. contou com uma riqueza de detalhes digna de uma jornalista todos os eventos ocorridos naquele dia, e o motivo pelo qual estavam ali.

Tudo isso de nada teria adiantado se o nome da falecida não tivesse sido citado em determinada altura da narrativa.

Nesse momento o mais incrível e inusitado aconteceu.

O policial era na verdade compadre da finada, e havia permanecido no velório durante toda a noite e tendo constatado o parentesco entre a senhora que o falava e a defunta se dispôs a guiá-los até a casa da falecida.

E assim o fizeram.

Antes de chegarem à residência a qual se destinavam escoltados por um policial militar compadre da morta, encontraram com a fúnebre comitiva que acompanhava o corpo para o ultimo adeus dos familiares.

E a esta seguiram, voltando a temida avenida, mas agora tomando um caminho desconhecido para os personagens de nossa história que evitava o perímetro de risco isolado pelos militares do exército.

Em fim chegaram depois de algum tempo de viajem ao local das exéquias.

Um grande prédio ladeado por palmeiras e fronteado por um belo jardim, onde um grupo de letras metálicas fixadas na terra dizia: “CREMATÓRIO LOCAL”.

Ao ver aquele prédio C.V.P.L. pensou:

_Esse lugar me parece familiar.

Já na parte interna do estabelecimento deu-se início a cremação.

Que foi realizada por quatro homens, usando ternos pretos dentre os quais um deles trazia no peito um crachá que dizia:

“INSTRUTOR”

Reginaldo Junior

13/01/07