A sorte de José

- ÓIA O CURÁ, PAMONHA, BOLO DE MILHO. TAMÉM TEM CAFÉ, PÃO,BISCOITO DE PORVILHO...

Eram seis horas da manhã. Todos os dias, naquele mesmo horário, José se encontrava trabalhando. Acordava às quatro da manhã, tomava banho frio - independente de ser primavera, verão outono ou inverno – colocava a calça Jeans gastada que havia ganhado de seu antigo patrão, uma camisa de manga curta xadrez de cor vermelha e branca e se aprontava para armazenar os “quitutes” que sua amada irmã fazia no dia anterior para vender na esquina da Praça da Sé. Fazia o café, colocava-o em uma garrafa térmica cuja tampa não permitia que o calor do líquido se mantivesse por muito tempo, enrolava-a num pedaço de papel alumínio (para permitir que o café chegasse quentinho em seu destino) e armazenava o cural, a pamonha, os pedaços de bolo de milho, a garrafa de café, os pãezinhos cortados ao meio e com manteiga e os sacos de biscoito de polvilho em uma caixa de isopor que ficava sempre amarrada em sua Barra Forte. Depois, trancava a “porta” de seu humilde barraco e punha-se a descer a ladeira do morro que morava e a carregar incansavelmente a sua bicicleta até que pudesse acomodar-se no banco e pedalar apressado para seu destino.

Há muito fazia essa mesma trajetória. Desde que sua mulher o havia deixado, há 12 anos, José perdera tudo o que havia conquistado na vida. E olha que não era muita coisa, apenas um casa alugada em um bairro periférico da Zona Norte de São Paulo e uma Brasília, ano 78, de cor azul. Humilde, acordava feliz para trabalhar em um supermercado. Um dia, chegou mais cedo do trabalho, estava feliz, havia recebido uma remuneração por ter sido o Funcionário do Mês. Melhor não ter chegado em casa. Encontrou sua mulher em decúbito dorsal na cama ao lado de seu vizinho, seu primeiro amigo ao chegar em São Paulo. Aporrinhou-se, esbravejou, praguejou. Levantou o infeliz da cama e lhe deu tanta pancada quanto agüentou. Sua mulher, não mostrando vergonha alguma com a situação, pôs-se apenas a abrir a porta do guarda-roupa, arrancar umas poucas peças (as que mais gostava), empacotá-las em sacolas plásticas e a tomar o caminho da casa da mãe. José perdeu o emprego, o sentido da vida e a casa. A única saída foi morar com sua irmã, uma pobre mulher que sofria constantemente as injúrias da pobreza que a vida lhe reservara.

Mesmo com todo o sofrimento, José continuava sua vida, alegre, vendendo os quitutes tão em apreciados por diversos fregueses:

- ÓIA O CURÁ, PAMONHA, BOLO DE MILHO. TAMÉM TEM CAFÉ, PÃO,BISCOITO DE PORVILHO...

Em seu caminho até a Praça da Sé sempre encontrava as mesmas pessoas que via todos os dias pela manhã: trombadinhas, trabalhadores que acordavam cedo para conseguir tomar o primeiro coletivo do dia, prostitutas que voltavam para suas casas exaustas (mas felizes) da noite de trabalho. José sempre cantava, cumprimentava as pessoas, observava o nascer do sol embaçado pela poluição. Acabava o serviço, voltava cedo para casa e ajudava a irmã a fazer as gostosuras que se transformariam em uma das principais refeições do dia de vários paulistanos.

Um dia, entretanto, José acordou antes que o despertador toca-se o seu pipipipi irritante. Acordara animado, com vontade de trabalhar e de retomar o rumo de sua vida. Arrumou-se logo, armazenou todo o alimento e o café na caixa de isopor, pegou um pedaço de papel de pão e um lápis que estava em cima da mesa da cozinha e anotou a seqüência numérica com a qual havia sonhado: 01-11-26-51-59-60. Há muito não jogava na Mega-Sena, mas sonhar com aqueles números não deveria ser à toa! Foi ao trabalho, mais feliz do que acostumado, vendeu todos os curais, pamonhas, bolos de milho, pãezinhos, biscoitos. Na hora de almoço entrou em uma lotérica, aguardou sua vez e fez a sua aposta. Concluiu ainda com a certeza de que os milhões já eram seus:

- Ó fia, aposta quatro veiz na teimosinha, vice?

E lá se foi José, cantando e sonhando, retomando o seu caminho de volta ao seu barraco. Isso. Barraco. Era a última vez que ele voltava para aquela triste moradia. Tiraria de lá a sua irmã, compraria uma casa luxuosa no Morumbi para que os dois morassem. Mas parar de trabalhar, ah não, isso ele não ia fazer. Ia montar uma rede de padarias, vender seus quitutes, colocar vendedor nas ruas, nas praças... Enfim, ia ser uma vida de prosperidade. Seguia José, pensando, feliz:

-Oxe. Bó pra casa fazê a mudança, que pra lá num vorto mais não. Eita!

E lá se foi, confiante. Esperou a hora do resultado. Sentou, descansou, conversou com a irmã. Arrumaram tudo. Na hora do resultado na rádio, José escutou:

- Atenção ouvintes da Rádio Atual. O resultado da Mega Sena deste sábado é 01-11-26-51-59-60.

Quase infartou! Correu, pulou, abraçou a irmã, ajoelhou, agradeceu a Deus, gritou novamente, dançou, gritou mais uma vez, sentou-se.

- EITA MAINHA DO CANTUÁ! TO É DE CARÇA CHEIA. RUMA LÁ PEGÁ O PATACO, IRMÃINHA!

Foram até a casa lotérica, segurava forte o bilhete premiado. Chegou ofegante, com um sorriso no rosto que cortava a face de uma orelha à outra. Foi falar com a atendente, quando de repente ela abre a boca e o interrompe rapidamente:

- pipipipi, pipipipi, pipipipi...

- Eita cabra da peste! Cumé quié?

- pipipipi, pipipipi, pipipipi... Acorde José, hora de trabaiá, homi di Deus! – grita a irmã.

E José acorda, não triste, mas chateado. Levanta, vai tomar o mesmo banho frio de todo dia, preparar o café, guardar todos os quitutes deliciosos na caixa de isopor e pedalar com sua Barra Forte até chegar à Praça da Sé:

- ÓIA O CURÁ, PAMONHA, BOLO DE MILHO. TAMÉM TEM CAFÉ, PÃO,BISCOITO DE PORVILHO...

- Por favor, eu gostaria de duas pamonhas e um pacote de biscoito de polvilho – pede um dos clientes diários de José.

-Ôxe, meu rei. Tá sete real, vice?

E José segue, vende tudo, pega sua Barra Forte, pedala de volta ao seu humilde barraco, sempre feliz, cantando:

“Baiano bão é u qui sábi trabaiá

Baiano bão é u qui sábi trabaiá

É u qui sóbi nu coqueru

Tira u coco, bébi a água

e deixa u coco no lugá...”

* Esse texto é uma homenagem aos incansáveis trabalhadores nordestinos e nortistas que fizeram com que a cidade de São Paulo (minha cidade natal) crescesse econômica e populosamente nos últimos anos. Obrigado a esses humildes trabalhadores. Os termos destacados da personagem não são ofensivos, de chacota ou discriminatório, mas sim para caracterização da personagem e de seu povo.