"A GRANDE DESCOBERTA"

(Escrito em 2003)

Comecei a perceber que havia algo errado comigo, ou melhor, meu organismo não estava bem. Aquelas dores generalizadas, os vômitos, a taquicardia, as câimbras, muito cansaço, e que dor de cabeça infernal. Não dava mais para agüentar. Procurei um médico.

Primeiro, o cardiologista. Diagnóstico: “Você tem o coração enorme”. Lembrei-me de que alguém já me havia dito isto. Mas agora parecia diferente. O que antes soava como elogio, agora parecia uma advertência de perigo iminente. Pelo menos, percebi a dimensão de uma boa metáfora. Belo consolo!

Segundo, o hematologista. Diagnóstico: “Você tem o sangue sujo”. De novo, lembrei-me de que alguém já havia me acusado de ter o sangue ruim. Agora, como antes, percebi que não se tratava de um “elogio”, com uma agravante: o que antes podia não passar de uma metáfora usada por alguém descontente comigo, agora soava como uma dura realidade.

Terceiro, o nefrologista: “Você precisa, fazer hemodiálise urgente, para não morrer envenenado por seu próprio sangue”. Percebi, a coisa era séria e, de tão assustado, já nem me lembrei da metáfora do sangue ruim.

Depois de me inteirar de o que seria a tal hemodiálise (trata-se de um processo em que consiste em passar o sangue do paciente por uma máquina, três vezes por semana, durante quatro horas; retirando, com isto, os excessos de substâncias, tais como: creatinina, potássio, uréia, etc. encontradas no sangue por causa da perda de capacidade dos rins de executar suas funções); de posse dessas informações, surgiu-me uma idéia: eu poderia fazer uma grande descoberta com o tal tratamento. Romântico consolo!

Sempre me acompanhou uma cruel dúvida: somos compostos de alma e corpo? A alma é intrínseca ao corpo ou é coisa distinta? Pensei: se prevalecesse a primeira hipótese (alma e corpo são uma só coisa), a alma estaria no próprio sangue e o tratamento limpar-me-ia até das indesejadas metáforas. Agora, se prevalece à segunda hipótese (alma e corpo são coisas distintas), somente o sangue seria purificado (sem metáforas). De qualquer forma, seria uma grande descoberta – alma e corpo seriam ou não seriam coisas distintas.

Hoje, após ter feito um ano de hemodiálise, após quatro anos de transplante – pobre e limitada condição humana – preciso confessar: nenhuma resposta me parece muito certa todas me parecem possíveis. Apenas concluo que o sangue foi limpo pela diálise (já que não morri envenenado por ele), a alma continuou passível às mesmas metáforas (já que continuo sendo a mesma pessoa de antes). Aliás, posso afirmar que existe alma? A favor desta tese, só tenho algumas ações humanas tão especiais, realizadas a meu favor, no decorrer desta jornada, as quais não podem estar restritas a um automatismo corporal. A saber: a dedicação de médicos (as), do pessoal da enfermagem, a dedicação de minha

família e, a maior de todas – a corajosa abnegação de minha irmã que doou um de seus rins.

Tudo o mais são magistrais paradoxos e/ou sutis metáforas da vida real.

Manoel de Almeida
Enviado por Manoel de Almeida em 20/02/2012
Reeditado em 26/03/2012
Código do texto: T3509327
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