PRIMEIRAS TRAQUINAGENS

O texto a seguir é extraído de "Crônicas da Vida Inteira", livro inédito sobre fatos de minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.

PRIMEIRAS TRAQUINAGENS

Passei minha infância entre o sertão, onde nasci, e a casa rosa que meus pais tinham próximo à capelinha e também não muito longe da escola local e do rio.

Ah, o sertão, quanta saudade dele! Pra chegar lá era preciso subir por um caminho de roça, como se diz, uma morraria danada. Tanto a área de pastagem ao redor da casa quanto as terras de plantio mais distantes eram bastante acidentadas, com lombadas e grotões, excetuando-se a baixada, trecho de pasto mais ou menos plano onde os rapazes às vezes se reuniam nas tardes de domingo pra uma pelada, e onde durante algum tempo houve dois açudes pra criação de peixes.

A moradia era de tijolos, mas bem acanhada pra quantidade de moradores. Somando-se a varanda lateral, à direita de quem chegava e onde ficavam os quartos das manas e da dindinha, a casa devia medir mais ou menos oito metros por seis. Pela porta da frente se entrava pra um ambiente em L que servia de sala, copa e cozinha.

Da sala se entrava no quarto do casal. Creio que foi ali o ninho de amor onde todos nós, os treze irmãos, fomos gerados. Foi ali também que o Paulo e eu dormimos juntinhos, aos cuidados da mamãe na mesma caminha ao lado, até os nossos seis pra sete anos, quando passamos pra casa de baixo, a mesma casa rosa dita acima e adiante descrita, a fim de irmos pra escola.

Foi ali ainda que eu aprendi uma das primeiras lições de vida: “quem não trabalha não atrapalha”.

Eu ia me esquecendo de dizer que as paredes da casa eram sem reboco e que a coberta era de telhas-vãs, ou seja, sem forro.

Certo dia eu despertei com aquele zumbido bem perto dos meus ouvidos. A janela estava fechada, mas eu vi pelos vãos das telhas que já era dia claro. Olhei e reconheci no lusco-fusco do quarto que era um marimbondo daqueles pretos, a que nós em casa chamávamos de papa-peixe. O danado, entrando por uma das muitas frestas, foi fazer sua casoca de barro bem ali, aproveitando, por questão de economia, a junta mais ou menos profunda entre dois tijolos.

O caso aguçou minha curiosidade, e eu me pus a observá-lo. O bichinho trabalhou, trabalhou, “Zum um, zum um, zum um”, fazia ele alisando o barro lá por dentro de sua construção. De repente ele saiu, levantou voo e sumiu por onde tinha entrado. Mas não demorou muito não. Sinal de que o depósito de sua matéria-prima não ficava muito longe.Voltou com nova bolinha de barro nas patinhas e enfiou-se lá pra dentro de novo.

De repente me veio uma ideia. Quando iniciou o zumbido novamente, eu me sentei na cama e tapei seu canteiro de obras com a mãozinha espalmada sobre o vão e fiquei esperando.

Pra quê! O bichinho veio cego e, zás! fincou-me uma ferroada daquelas, que me fez botar a boca no mundo.

— Bem feito! Quem te mandô mexê...? — ralhou minha irmã, que veio correndo pra ver o que tinha acontecido, enquanto o Paulo, que eu acordei com meus berros, ria a mais não poder da minha desgraça.

Entre o fogão e a tábua de lavar louças ficava a porta dos fundos, que dava pras serventias da casa, num rancho fechado de madeira com piso de chão batido a que chamávamos de cozinha e onde ficavam a despensa, os fornos de cozer pão e do tacho de cozinhar batatas pros porcos de engorda e o alambique com os cochos de fermentação do vinhoto pra produção da cachaça, e as pipas enormes, quase sempre cheias do produto pra venda.

Era ali, ao calor do fogo à boca da fornalha, que nós nos sentávamos nas noites frias de inverno a ouvir a dindinha, nossa avó materna, ou os mais velhos contarem causos e mais causos ou proporem adivinhações enquanto a batata pros porcos era cozida.

Era ali também que se amontoavam dezenas de engradados de garrafas, à espera de novas encomendas do produto, e nós passávamos horas inteiras lavando-as ao murmúrio da pinga recém-condensada se derramando no pote de barro.

Um dia minha irmã Maria, a mais velha delas e que ficava nos afazeres da casa e do alambique, me incumbiu de cuidar do pote de cachaça.

— Me chame quando ‘tivé quase cheio, que eu vô lá na fonte — recomendou e saiu.

Eu acho que essa foi a minha primeira responsabilidade, ou irresponsabilidade. E eu fiquei ali um tempão de olhos pregados no pote. A pinga se despejava num fiozinho tão fininho, que de meio pra baixo se transformava em gotas. E nada de o pote encher. Daí me veio uma ideia brilhante pra me ver livre. Peguei uma caneca, aparei água da calha e joguei várias canecadas no pote até quase enchê-lo. Feito isso, corri lá pra frente da casa e me pus a berrar pela irmã, que estava lá embaixo na cachoeira lavando roupa.

— Mariaaaa, o pote ‘tá cheio! Ô Mariaaaa, o pote já encheu.

Não demorou muito, ela apareceu correndo morro acima e já com cara de braba. Sem dizer uma palavra, ela chegou ao alambique encostou a mão no pote e olhou-me séria.

— Ô seu sem-vergonha, tu andaste botando água na cachaça, foi!? Pois toma, oh!

E deu-me uns bons tabefes pelo pescoço antes de abrir o respiro do capacete e despejar o conteúdo do pote, misturando-o novamente ao vinhão fervente no tacho.

“Como foi que ela descobriu?”, me perguntei por muito tempo, intrigado e admirando a esperteza da mana.

Precisei crescer bastante até descobrir por mim mesmo, que a água fria, que eu tinha jogado, esfriou o conteúdo e a superfície externa do pote. Se eu tivesse sido tão esperto quanto fui malandro e juntado água quente do cocho, ela não teria descoberto, nem teria eu levado os tabefes. Não faz mal. Assim eu aprendi bem cedo, que “o diabo ajuda a fazer, mas não a esconder”.