NEGRO DA MANTA

O texto a seguir é extraído de "Crônicas da Vida Inteira", livro inédito sobre fatos de minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.

NEGRO DA MANTA

Diz-se que o comportamento humano é cerceado, direcionado e controlado por medos incutidos desde a infância nas mentes das pessoas.

Somados a repreensões e chineladas, lobos maus, fadas e bruxas, lobisomens, assombrações e toda sorte de entes imaginários, trazidos por histórias infantis e crendices populares, começam a povoar o imaginário infantil desde os primeiros anos.

Depois vem o credo religioso trazendo promessas de céu, com seus anjos e santos, e ameaças de inferno cheio de fogo e demônios. Tudo isso faz desenvolver na criança um clima de medos, muitas vezes inconscientes, que vão perturbar a pessoa por toda a vida.

Na minha primeira infância, vivida lá no sertão, a qualquer tentativa de desobediência, éramos ameaçados de ser carregados pelo Negro da Manta, um ente fantástico, enorme e forte que podia aparecer a qualquer momento pra levar, enroladas na manta que ele trazia às costas, as crianças choronas, birrentas, malcriadas e fujonas.

Qualquer estranho, preto ou branco, que passava pelo caminho ou se aproximava de casa já nos punha de sobreaviso, e corríamos pra dentro. E eu cresci até grandinho com medo desse tal negro da manta que nunca aparecia.

Um dia, porém, lá pelos meus três a quatro anos, quase me borrei todo.

No anoitecer dos domingos, a maioria da família subia o morro pro sertão, onde passava a semana na lavoura. Num domingo, eu e o Paulo, em vez de subirmos também, ficamos embaixo, na casa rosa próximo à capela. Na segunda-feira de manhã, mamãe resolveu subir também pro sertão e me convidou pra ir com ela, mas eu preferi ficar com minha irmã. O Paulo, porém, contra a minha expectativa, embandeirou-se e foi com ela. Eu fiquei. Meio indeciso, mas teimoso, fiquei, pensando que ele acabaria ficando também.

Até esse dia nunca tínhamos ficado longe um do outro um instante sequer. Éramos carne e unha mesmo. Instantes depois ao ver-me sem ele, fui ficando angustiado, nada mais tinha graça, e eu acabei me arrancando atrás. Eu pensava que logo os alcançaria, mas qual o quê! Embora corresse feito louco morro acima, não os alcancei.

O caso não teria ficado em minha memória se lá pelas tantas, já cansado de tanto correr, eu não visse um desconhecido vindo morro abaixo em minha direção. Eu gelei e fiquei ali pregado ao chão, esperando ser envolvido na manta e levado não sei pra onde.

Por sorte, o homem passou sem me dar a mínima importância. Acho que nem me viu. Mas eu disparei novamente morro acima com maior velocidade e cheguei ao sertão quase morto de susto e de canseira. Nem pude soltar a voz. Foi preciso que mamãe me amparasse e me desse água, admirando-se de minha proeza de ter feito o percurso todo sozinho

Hoje não sei dizer se o homem era realmente feio ou se sua feiúra foi fruto do meu medo. Nem sei se era preto de verdade, mas me pareceu igualzinho ao negro da manta que me descreviam.