DIARIO DE UM DIA

Agora que o dia já quase finda... Lá venho eu a pensar que o dia termina após as dezessete horas... Quantos pensamentos miúdos nessa arte de viver... Esse é meu mal. Penso pequeno. Ou será que penso demais? Ou pelo menos penso na linha dos sonhos. Mais uma vez enganei-me. A linha dos sonhos é infinita. Deve ser isso. Sonho com o infinito quando o corpo trabalha poucos metros em torno do físico. Esse sim é o meu mal. Isso me parece terrivelmente destrutivo quando o viver cobra espaços entre o tempo e a realidade. Sonhar seria perda de tempo. Será? Contudo não vivo sem sonhar. Sou uma sonhadora incorrigível. Alguma vez já disse isso.

Nesses meus dias entre a residência e o trabalho, um emaranhado de físico desce a escada deixando entre a cama desfeita o resto de sonhos. Sim durmo sonhando. De olhos abertos. Procurando fendas nesse fenômeno que nos impulsiona nem sei em que direção. Talvez a descer escadas e enfrentar o mundo lá fora. Lá fora? Talvez fora de mim. O estranho é que subo novamente outra escada e me encarcero no mundo capitalista. Não seria mais apropriado dizer comercialista? Existe essa palavra? Acho que não. Mas a inclui no rol de minhas palavras sem nexo, enquanto quatro paredes me cercam e dois olhos opacos olham sem ver um pedaço do céu que aparece no retângulo da vidraça. E ainda imploram a atenção do tempo. Ele sim corre a meu lado. Ou será que corro ao lado dele?

Agora me vejo falando nas entrelinhas brancas todo esse sentir. Será que elas entendem esse diálogo melodramático que lhes travei? São tão submissas! Apenas se deixam possuir, rabiscar. Talvez nem compensaria o tempo que me entrego a elas nessa conversa sem razão. Sem futuro. A vontade minúscula de pensar e escrever diminui ainda mais nas próprias palavras que lhe transcrevo. Já não sei o que deveria escrever. Relatar o dia ou minhas lamúrias rotineiras? Talvez eu devesse apenas ficar olhando o silêncio sem escrever nada alimentando ainda mais essa expressão opaca que trago no olhar como a morrer nas próprias sombras.

Lembrei-me que nos últimos dias não tenho alimentado palavras. Apenas a oração da manhã na Bíblia. Não fico sem ler a oração, nem que a leia em poucos segundos. E pensando mais no assunto esta me parecendo mais uma superstição para começar bem o dia. Talvez uma obrigação de cristão. Deus! Quanto pensamento absurdo. Mas o certo é que pareço ter cavado uma sepultura para as palavras. Joguei-as lá na escuridão que representa tudo o que quero escrever ou pensar nesse momento. Percebo que tenho me alimentado quase do nada. Talvez por isso de manhã tenha sentido calafrios. Quanta ignorância a minha. Será que pensamentos ou sentimentos se envolvem com o estomago? Mas outro dia ouvi alguma frase que dizia “cante com o estômago”. Será que o sentimento estava ali? Nunca compreendi realmente. Mas fiquei analisando o porquê das gastrites nervosas. Só mesmo eu pra pensar tanta sandice.

Ih! Diário de um dia, suas entrelinhas certamente não compreendem tanta bobagem juntas. E eu que pensei que pudesse fazer uma análise de meu eu enquanto fazia de você meu divã. Dizem que se faz uma boa análise na cozinha. Dizem também ser o melhor cômodo da casa. Ali tem mais calor humano. Envolve-se mais, enquanto toma-se café ou engana-se o estômago nesses sabores que não se explica. Mais uma vez penso que o sentimento envolve o estômago. Talvez eu devesse me especializar em culinária do que me arrastar a procura de palavras.

Mas sou um desastre na cozinha. E sempre enxergo meus passos através de negras linhas de grafite. Sim, penso que os passos têm a forma de escrita. Vai-se longe através delas. Ao futuro e ao passado. Mas viaja-se mais ao passado, tenho percebido isso. E também nos fazem sonhar. A linha da imaginação é mais fértil que o ciclo reprodutivo de uma fêmea. Isso realmente me fascina e nem sempre quero fazer análise como hoje.

Hoje, logo pela manhã saí pela porta em direção à escada. Porque friso esse detalhe, quando o outro cenário é que absorve toda a minha vida? Que loucura. Talvez porque o sinta como uma prisão. Não há nada pior que sentir o dia como uma prisão. Não importa se o pensamento tem a liberdade do silêncio e a chave do segredo. Que importa esses detalhes, caminhos, teia de preocupações a enredar a distância habitual do cotidiano? Ainda que agressivo. Quem sabe apaixonante, mesmo que a adrenalina esteja presa no sangue espesso que corre nas veias obstruídas. Sinto que preciso viver de outra forma. Mas não sei qual.

Ah! Se eu tivesse a coragem daqueles que violam as próprias barreiras. Barreiras de pensamento e sentimento. Da maneira de ver as coisas. Mesmo que buscasse palavras. Mesmo que se sonhasse que o infinito estava ali do outro lado da rua atado numa simples manhã, no descer de uma escada, na reclusão necessária entre quatro paredes de um escritório. Talvez assim valesse as linhas rabiscadas em páginas brancas.

Estou a pensar que o viver exige um curso de viver contra todos os destinos. Não... Não... Talvez aceitar o destino. No útero éramos envolvidos numa proteção celestial. O mundo aqui fora tem a garra de felinos. Pessoas se atropelam na necessidade de sobreviver. O que nos leva nessa ânsia quase louca de se proteger. Está bem claro que só nos mesmos podemos romper nossas barreiras. Organizar nosso tempo, nossos sonhos. Não é fácil pensar assim quando respiramos sempre a ausência dos porquês sem nunca ter compreendido o significado do que quer que seja.

Penso que nem os filósofos também nunca tiveram certeza de nada. Isso me tranqüiliza. Eu que sou uma simples mortal não preciso compreender todas as razões. Nem buscar motivos para o arrastar rotineiros de meus passos pela mesma escada, ou se os sentimentos me doem o estômago e o dia termina após as dezessete horas. Sim, não preciso compreender. Precisaria apenas viver. Mas antes que a tarde finde, sinto necessidade de sentir a força da grafite nas entrelinhas de um diário de um dia.

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 19/01/2007
Reeditado em 10/12/2008
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