_Acidente premiado
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– Vida de polícia é dura demais! Quando prende o bandido o povo reclama; se não prende, reclamam também. Quando age com firmeza e rigor durante as ações – é ultrapassada, intransigente; se atua com cidadania, desrespeitam-na.
– Alto lá, camarada! Que estultícia[1] é essa? A Polícia tem é moral... Você já viu o que acontece quando a Polícia chega num bar? Todo mundo fica em pé! É o policial pedir e o dono do boteco desliga o som. Os milicos entram de graça em clubes...
– Alto lá você também! Os milicos nada! Eu sou Bombeiro (militar), e já fui barrado várias vezes na entrada de clubes. Da última vez que isso me aconteceu eu reagi com firmeza. Quando meu amigo procurou por mim, deu de cara com o porteiro do clube agarrado ao portão de acesso. Eu segurava o desavisado pelas barbichas e gritava: “– Não vai me deixar entrar, não! Não vai me deixar entrar, não, hein!”. Eu puxava era com força, camarada! Por pouco não arranco a barba do homem.
– O povo só lembra que Bombeiro é autoridade quando está no sufoco... Nessas horas vocês são os caras!
– Civil folgado você, sabia?
– Também acho. Não sabe nada da vida de caserna[2] e fica tirando onda.
– Calma! Estamos conversando. Não posso falar o que penso? Na realidade vocês são pessoas de sorte. Estão empregados. Trabalham sem se preocupar com o dia de amanhã. Essas coisas não existem nas empresas privadas. Vocês têm Estabilidade.
– Por falar em sorte, vou confidenciar o que fiz numa ocorrência. Envolve a questão da autoridade também.
– Veja lá o que você vai falar, hein! Não se esqueça, tem paisano[3] aqui.
– Posso ou não posso contar?
– Conte isso de uma vez...
– Então vamos aos fatos: Eu estava de serviço como socorrista e o motorista da ambulância era o CB Praxedes. Por volta das vinte e duas horas, ocorrência: atropelamento. Um casal de namorados tinha sido colhido por um automóvel no centro da cidade. Fomos com a devida brevidade. O condutor do veículo se evadiu sem prestar socorro às vítimas e encontramos os dois muito agitados – e uma multidão de curiosos. Eles pareciam discutir. Desci da viatura e os abordei, tentando aproximar-me para o início do atendimento. De repente, o rapaz solta o verbo:
– Sai fora, otário! Ninguém aqui precisa de nada não, tá ligado?
Tentei acalmar os ânimos, mas ele não entrou na minha e prosseguiu com as agressões verbais:
– Meu irmão, sai fora! Se você tocar em mim eu processo você, tá ligado!
Voltei para a ambulância e informei a situação ao CB Praxedes. Ele pegou um modelo de declaração que tem nas viaturas, entregou-mo e disse:
– Leve pra ele assinar e vamos embora. Se não quer ser atendido, paciência.
Dirigi-me ao casal novamente, agora com o papel na mão:
– O senhor poderia assinar esse papel, informando que recusou o atendimento?
– Bicho, tu é mané mermo! Quem é tu pra me obrigar a assinar isso?
Voltei transtornado para a ambulância. Naquela hora deu vontade de ser policial... Quando retornei para a viatura e o CB Praxedes me viu com a folha em branco, esbravejou:
– Você é um recruta muito do frouxo! Moço, você é incapaz de conseguir uma assinatura na droga de um papel! Vá lá e só volte com esse papel rubricado, nem que seja com um dedão marcado nele, entendeu?
Eu fui. Em menos de um minuto, com a folha assinada, entro na ambulância e falo:
– Vamos, chefe! Podemos voltar para o quartel.
O CB Praxedes, assustado, pergunta:
– Que foi que você fez, recruta?
– Falei pra ele, chefe, que os Bombeiros sorteavam todo final de mês um televisor, uma geladeira e uma bicicleta entre as pessoas acidentadas na cidade... Foi molinho, ele assinou sem ler.
– Recruta desenrolado, gostei!
E voltamos para o quartel.
Dias depois, o dito cujo aparece no grupamento. É identificado na guarda do quartel, agradece o atendimento recebido, e pergunta o nome do sorteado do mês. O plantão da hora, alheio aos fatos, chamou o fiscal de dia... E o caso foi parar na sala do Major comandante. Ouvi bem quando o Major falou que tudo não passava de engano. Ao sair da sala, o cidadão comentou com o comandante:
– Pode crer, comando! Devo ter fumado uma lombra[4] muito doida, tá ligado!
E eu, amigos, também estava ligado, tá ligado, e saí de mansinho.
Crato-CE, 23 de outubro de 2008.
01h15min
[1] Estupidez, burrice.
[2] Quartel.
[3] Indivíduo que não é militar.
[4] Qualquer tipo de entorpecente.