Desarmamento

É triste ver toda essa encenação a respeito do desarmamento da população. Trata-se de uma campanha mentirosa porque o povo nunca esteve tão desarmado. É triste ver o poderio do Sistema Globo de Rádio e Televisão por trás disso tudo, na medida em que se constitui num poder de convencimento avassalador. Parece até que arma se adquire como roupas ou remédios. Além de não ser um objeto barato, não é facilmente encontrável. Nunca vi loja de armas em shoppings no Rio, como existem nos USA.

Quem anda armado são os militares, policiais ou correlatos, e obviamente as pessoas que ganham a vida de uma forma irregular – os bandidos, e também os maus políticos (que são maioria dentre os que se incluem na categoria), estes últimos detentores de porte de arma regulamentar. O povão não tem arma. Primeiro porque não se trata, como já disse, de artigo barato; e segundo porque está cada vez mais difícil obter autorização para o porte.

Trata-se, portanto, de uma campanha ilusória, cuja finalidade é desviar a atenção das pessoas. Deixa-se na penumbra uma questão muito mais preocupante que é a da violência, intrinsecamente ligada à corrupção e à miséria, estando a corrupção praticamente institucionalizada em setores influenciados, supervisionados ou monitorados pelas polícias civil e militar. Em muitos casos com o apoio ou a cumplicidade de autoridades desses setores.

A rigor, o caso da menina Gabriela*, tragicamente abatida numa cena de certo modo rotineira no Rio, e o do comerciante chinês**, torturado até a morte num setor prisional, são emblemáticos sob o ponto de vista da violência em nossa cidade e em algumas de suas instituições. Mas não sob o ponto de vista do uso de armas. Não há estatuto de desarmamento que possa acabar com as armas das pessoas que fazem uso delas como instrumento de trabalho, claro que ilícito, marginal, condenável, etc. Só que os bandidos não vão devolver as suas armas, como o farão certamente as pessoas de bem, direcionadas por esse tipo de campanha. O que quero dizer é que não é acabando com as armas que iremos acabar com os bandidos ou com a violência. Até porque de certa forma as armas já não existem entre as pessoas de bem. E elas nunca deixarão de existir entre as pessoas do mal.

Seria lícito falar em desarmamento das pessoas se fosse elevado o grau de segurança proporcionado pelas autoridades policiais e militares. Sabemos que não é. Muitas vezes sentimo-nos até desprotegidos quando nos deparamos com uma autoridade policial. O cidadão desarmado estará irremediavelmente desprotegido. Não apenas o que, devidamente equilibrado e adestrado, optasse por possuir uma arma, como principalmente o que não pode ou não deseja fazer uso de uma.

Rio, 23/09/2003

*Gabriela Prado, aos 14 anos de idade, morta em 25/03/2003 durante um tiroteio entre policiais e bandidos num assalto ao metrô da Tijuca.

** Chan Chang, comerciante chinês torturado até à morte, em setembro de 2003, numa das prisões do Rio de Janeiro.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 07/03/2012
Reeditado em 07/03/2012
Código do texto: T3540100
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