Praga

Praga é uma cidade que ainda não existe. Perdida na minha imaginação é onde se encontra. Até que eu chegue a ela e a consuma não vai existir, exceto como referência no mapa. Praga. Cidade que quando fecho os olhos e tento imaginar parece meio cinza, meio vermelha, com suas lendas de homens bárbaros e bruxas cruéis que vivem em florestas, como nos livros de criança. Lugar de estradas de barro, desconhecidas, levando a aldeias quase pré-históricas, onde há homens que tocam cornetas e batem tambores que lembram a chegada de piratas. Estradas que parecem dar no fim do mundo.

Lugar de árvores esgarçadas, de casas feitas de uma maneira que nunca vi e onde se fala uma língua que bem de longe se reconhece, como uma voz rouca saída de um útero quase imperceptível: “Mina Riznale” meu nome.

Há certa magia quando se diz “Praga”, dita com força para afastar de vez os maus espíritos numa invocação. Lugar onde podem estar guardados os mais raros tesouros, pois é assim que queremos as cidades, foi assim desde quando Constantinopla estourou e as riquezas do mundo se aglomeraram. A cidade perfeita é sempre um lugar ideal, um lugar onde poderíamos começar do zero, enriquecer a vida, o coração e os bolsos, onde poderíamos de fato viver quem somos. Talvez Praga esteja apenas dentro de mim, talvez seja eu mesma.

O que é Praga? Próximo lugar? Oportunidade que escorrerá? Muro que arrebenta? Mais uma cidade fantasma em que acredito ter leite e mel à minha espera? Quando mais uma vez fecho os olhos, quero dizer algo muito sincero quando penso em Praga, que não sei o que é. Lembro-me de ter visto fotos numa revista dizendo que Praga parece muito com Olinda, cidade onde cresci nos braços dos meus avós durante o carnaval. Cheia de ladeiras antiquíssimas e lampiões, com ruas onde se vê casas que escondem com insinuação sensual o oceano, que se abre por frestas entre muros escondidos. Talvez Praga insinue não o oceano mas um outro horizonte que lembre o avanço do mar e memórias de infância, talvez eu esteja querendo passar uma borracha no meu passado sem querer deixá-lo totalmente e é daí que vem Praga.

É um lugar onde eu gostaria de andar sempre descalça, de saia leve, de cabelos soltos sempre, com as mãos atadas ao amor de filhos e netos e o amor verdadeiro, e onde minha única função seria ter um trabalho simples, como vender todas as minhas quinquilharias numa praça pública e depois voltar para casa, uma casa pequena, acolhedora, onde eu pudesse de fato me sentir em um lar e esquecer todo o meu passado e essa vontade louca de recomeçar sempre minha vida, apagar tudo, esquecer quem já se foi, parar de chorar meus mortos, parar de almejar um futuro grande, mudar o número da identidade mais uma vez, cuidar de um jardim, cozinhar, lavar os cabelos com uma jarra de água fria, refrescando o corpo.

Eu gostaria de verdade que houvesse isto tudo para mim como poderia haver em qualquer outro lugar mas que para mim estaria em Praga. Uma coisa que eu sinta, como num recomeço, que é preciso ir e estar e ser de novo. Uma nova chance. Por isso que Praga ainda não existe ou talvez dentro de mim morra da mesma maneira que nasceu. Porque talvez seja preciso ficar onde estou, de verdade ficar porque já andei bastante, largar as malas, esquecer o vento, ficar. Verbo que pesa. Talvez ficar em Praga por que não? Ir até lá e ter a coragem desta vez de ficar. A coragem de enfiar os pés na terra e virar árvore, florescer diferente, dar frutos, sombra, num lugar parada.

É que às vezes ando vendo fotos antigas, ando revisitando minhas memórias e querendo ir até o começo de minha geração, tentando achar algum sentimento que justifique querer estar numa cidade que conheço intuitivamente, cidade em pouca evidência comercial e turística, cidade que no entanto preservou-se das guerras mas que o mundo quase não fala, pousada num lado pobre da Europa entre vãos de deserto, onde o vento corre sem obstáculos e a poeira levanta para sumir, evaporar-se no ar sem notícias de vida alguma. Cidade enfim, um lugar, lugar em mim, lugar qualquer que existirá ou não existirá ou que já existe e peguei seu nome emprestado para me definir.

Longe permanece a cidade real, com sua vida urbana e sua vida rural, suas ruas e casas e edifícios, suas estórias, rios, lagos e o mar, um mar de desolação e esquecimento, a banhar o solo e as pessoas, pessoas que eu poderia conhecer, pessoas que poderiam virar o rumo da minha vida e me fazer ficar, estórias que poderiam descansar meu espírito à noite, terra estrangeira, tão estranha e desconhecida quanto eu. Mas o “se” é sempre o “se” mágico e não é simplesmente um “se”.

29/10/2009

Mila Mariz
Enviado por Mila Mariz em 11/03/2012
Código do texto: T3548980
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