Lavar louças

De todas as atividades domésticas, a que mais me agrada é lavar louças. Inicialmente, coloco dentro da cuba da pia o máximo de objetos possível; assim, conforme enxáguo os utensílios ensaboados, a água que escorre vai diminuindo consideravelmente o nível de sujeira dos que estão embaixo. Lavo primeiro as partes menores que, por lógica, tem menor quantidade de resíduos. Deixo a televisão ligada. Não que eu preste atenção ao que o repórter fala, porque as desgraças são sempre a mesma novela: só se alteram os protagonistas. É que me agrada ter alguém falando sem que eu me obrigue prestar atenção. Minha atenção é para dentro de mim. Rememoro meu passado, recente e remoto. Das coisas boas de que me lembro, fico feliz e me elogio. Quanto às lembranças ruins, sendo culpa minha, martirizo-me; não sendo, sinto piedade e faço ar de riso, demonstrando certo grau de superioridade. Continuo nessa introspecção e vou lavando. Coisa que me deixa fascinado é o escorredor de pratos, onde colocamos muito mais que pratos: louça, alumínio, vidro, plástico, madeira. É por meio dele que demonstramos nossa habilidade arquitetônica. As partes parecem se encaixar perfeitamente, e o monumento vai se avultando. E, por mais que esteja abarrotado, sempre encontramos um espacinho para aquela peça que ficou esquecida sobre algum móvel. Lavo sem pressa, peça por peça. Enquanto extirpo a sujeira, exorcizo meus fantasmas diários que, juntos, vão para o ralo. Logo, lavo também a pia, mármore pronto para o próximo abate. Ao final, tudo como estava: a louça, tal qual minha alma: lavada. O coração, tal qual a arquitetura sobre o escorredor de pratos: pronto para ser desfragmentado de novo.

Antônio Carlos Policer
Enviado por Antônio Carlos Policer em 12/03/2012
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