Da fenda do muro

Da fenda do muro nasceu uma planta. Pequenina e verde clara, as folhas lembram – me os antúrios que minha avó plantava. Minha avó se fosse viva, teria hoje cento e dezessete anos. Lembro – me ainda de vê-la em sororoca. Quisera que fosse leve e mágico como imagino que devam terminar as vidas bem vividas, mas a respiração ofegante denunciava: ela sofria. Vi pouco porque meu primo Paulo tomou-nos, a mim e à Sueli, pelo braço e tirou-nos dali. Alto, enlaçava -nos o pescoço e apenas caminhava. Quando voltamos, ela jazia sobre a cama que durante anos testemunhou sua dor e envelhecimento. Eu tinha doze anos. Pouco depois a mesma cama me foi destinada e passei a vê-la em sonhos. Mas, ao contrário do que possa parecer, não eram sonhos perturbadores: via-me ao seu redor enquanto nos contava estórias e planejava uma casa na árvore. Lembrava-me das muitas vezes que puxava-nos pela mão, a mim e a meus primos, ainda muito vigorosa, pelas ruas, para visitar seus conhecidos, para desespero de meus pais e minhas tias. No Natal do ano anterior ela havia pedido que eu fizesse uma prece quando estivéssemos à mesa, para que fôssemos unidos e procurássemos viver bem. Não fiz, incomodada pelo medo de alimentar minha fama de exibida. Naquele ano, depois de sua morte, revelei à minha família e atendi tardiamente seu pedido. Plantas nascem e plantas morrem. Às vezes duram mais, às vezes menos que nós. Ontem à noite, voltava para casa e vi um acidente: um carro destruído e o motorista ainda preso às ferragens. Pouco menos de meia-noite e meu filho liga avisando que ia sair e chegava tarde. Quinze minutos depois foi minha mãe quem telefonou preocupada: ele saíra de sua casa, chamado pela ex-namorada, porque alguém havia morrido. Ia caminhando, lá pra perto do aeroporto, longe, muito longe. Fiquei sabendo depois que ele conhecia o motorista que perdera mulher e filha no acidente do Gol destruído. Morte brutal e estúpida. Ao telefone, ele me disse: “estou me sentindo estranho”. Sei que o namoro não existe mais, mas ele atendeu o chamado e entendi que esse filho crescera em tão breve espaço de tempo. Filhos nascem e filhos morrem. Às vezes depois, às vezes antes de nós. Recentemente venho repetindo meu pai ao ler quase que diariamente o necrológio do jornal e não importa que não reconheça os nomes, acabo imaginando como teriam sido suas vidas: amaram e foram amados? Encontraram respostas pra suas dúvidas? Puderam sonhar, trabalhar, saborear um beijo ou uma barra de chocolate? e rezo pra que essas vidas não tenham sido em vão. Estava caminhando quando esse texto finalmente começou a nascer acompanhado de um pressentimento de que algo em mim está morrendo. Noite agradável e lembrei que, dia desses nasceu o neto de minha prima Sueli. Gustavo é pequenino e ela, generosamente, entregou-o em meus braços para que eu lhe desse banho. Vi nascer Milena, mãe de Gustavo e Milena já é mãe. A vida caminha. E há muito por ver, por experimentar, músicas para ouvir, sabores e cheiros. A vida às vezes é tenra como Gustavo, às vezes vigorosa como minha avó, às vezes estúpida como o caminhão que atravessa a pista, às vezes generosa como Sueli, às vezes é uma prece que não fazemos ou um chamado que atendemos tardiamente. A vida é frágil e merece carinho. Teimosa e brota por entre as fendas dos muros. Também estou me sentindo estranha. Quisera que fosse leve e mágica, mas a vida apenas é. E é preciso caminhar.

20/03/2004.

Raquel DPires
Enviado por Raquel DPires em 13/03/2012
Reeditado em 08/04/2012
Código do texto: T3552469
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