MEMORIAS DE MINHA RUA
"O CACHORRO DE DONA VICA"

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Dona Vica é dessas pessoas com quem se pode levar um bom papo.Calma, descontraída,com apurado senso de humor, transforma com facilidade problemas do cotidiano em situações capazes de levar a boas gargalhadas.A sua gargalhada sonora,por si só,já é um alento.Alivia tensões,faz -nos sentir-se bem.
Batista seu esposo,gauchão de fibra,ferrenho defensor do tradicionalismo dos pampas,não é diferente;o que os torna um casal admirável.
Velhos conhecidos e amigos dêsde meus tempos de garoto (e isso já faz um bom tempo! rsrs...) quando reuniam-se em nossa casa nas noites de domingo,e juntos ouviámos pela rádio Farroupilha de Porto Alegre o "Grande rodeio Coringa" e o rádio teatro que era apresentado na sequência.
O F A T O:
Anos sessenta...O assunto arrastara-se pela rua do Fomento em toda a sua extensão,ganhando aqui e ali alguns pequenos complementos que iam deixando a história (modesta) cheia de espantosos "Credos!" ,"Figa em Cruz!" e "Minhas Nossas!"...
Vica possuia um cachorro de estimação.Preto,lanudo,pelos brilhantes,atendia pelo pitoresco nome de "Vielú".Apesar de muito bem alimentado e acarinhado,passou a ter um sério desvio de conduta;tornara-se viciado em ovos frescos de galinha.Montava guarda ao redor do galinheiro e quando as carijós botavam;o adulado cachorro os devorava por conta da triste sina que o destino lhe impusera.Isso colocara dona Vica diante de um impasse:Se por um lado era grande a adoração devotada ao seu fiel (agora nem tanto) amigo,não era menor a que sentia pelas penosas e os ovos que forneciam,classificados que eram por tamanhos e formatos,separados aquêles que seriam para consumo daqueles que serviriam para fazer vir ao mundo eventuais ninhadas de pintinhos.
A coisa agravara-se de tal maneira que ,num certo dia,meio a contragosto,tomara-se a decisão de acorrentar o delinquente.Seria por pouco tempo...Uma curta temporada de tratamento...O suficiente até que se recuperasse.Assim justificava-se a dona do animal. Privado de liberdade e sem poder dar vazão ao seu vício,entrou em depressão;e,novamente solto,de pronto retomou o seu descaminho.
Foi então,numa roda de chimarrão e prosa entre comadres,quando o assunto veio à tona que uma das vizinhas,do alto de sua experiência de vida,receitou o remédio certo para acabar de vez com o vício do meliante.
_Dona Vica,disse a vizinha,o que vou lhe ensinar é coisa antiga. fazia-se desde os meus tempos de menina;e era sempre "tiro e queda".Cachorro maroto perdia a arrogância da noite pro dia.A senhora cozinha um ôvo e quando êste estiver pelando de quente,abra o foçinho do "infeliz" e meta-lhe goela à baixo.Depois disso,asseguro-lhe que êle nunca mais vai querer sequer olhar para o rabo de uma galinha.
O conselho que acabara de ouvir,embora considerado de extrema crueldade (nos dias de hoje daria cadeia) ainda assim precisava ser posto em prática como única forma de restabelecer a ordem naquêle galinheiro.
Chegara o dia nefasto...Vica com todo o seu sossêgo,dividida em seus sentimentos mais íntimos;de um lado a radicalização do ato,a malvadeza a ser cometida...De outro a necessidade de resolver aquela situação.Os pensamentos lhe atormentavam.Isso é uma tortura,confabulava com seus botões ,enquanto visualisava amargurada o objeto da punição borbulhando em fervura numa panela.Terminado o cozimento,o ovo(pelando)retirado numa colher,chegara a hora de por em prática a receita de dona Cruela,a vizinha.Aquela!...
_Vielú!...Meu cãozinho querido,veem cá!...Veem!...Vielúúúú......meu cachorrinho predileto,veeemmm....veemmmm....Desconfiado,o lanudo não obedecia aos carinhosos apelos da dona e o quintal fôra percorrido dezenas de vezes em tôda a sua extensão.
Vica ,com colher e ovo na mão, a chamar-lhe com muito jeito e o animal,inteligente, a esquivar-se antevendo algo tenebroso que lhe estava predestinado.O impasse consumira quase meia hora quando de repente Vielú viu-se encurralado junto ao portão.Preso à coleira e tendo agora despertado a ira da proprietária,estava prestes a ser encaminhado aos porões da tortura quando ecos da rua trazendo uma voz muito familiar,adiaram-lhe o castigo.
_Bom dia dona Vica! Saúdam-lhe amistosamente.
_Bom dia!...Como vai?...E aí ,em animada prosa,consumiram-se mais uns quinze minutos.Na rua,a velha conhecida.No portão,Vica segurando o cachorro preso à coleira.E o assunto fora ganhando densidade...Mudanças de temperatura, alfaces fresquinhas recém chegadas na quitanda,custo de vida,o noivado da filha mais nova,blá,blá,blá...Finda a conversa Vielú ,quase arrastado, fôra conduzido aos fundos da casa e Vica nem se dera conta de que àquela altura o ôvo já havia esfriado.
-Nada de agir com o coração,que prevaleça a razão ,pensava. Num ímpeto enfiou o ôvo na boca do cachorro apertando-lhe fortemente o foçinho.Gostaria de possuir a frieza da vizinha,mas a sensibilidade não lhe permitia.
Confusa e corroída de remorso,virou o rosto para o lado como forma de evitar a visualização daquela cena dantesca.
Passaram-se alguns segundos e sem que o animal esboçasse a menor reação,voltou-se,soltando as mãos do foçinho do cachorro.Êste,então,lançando-lhe um olhar de satisfação,abanou o rabo e lambeu os beiços.
Vica,abismada,não conseguia entender o porque de um castigo tão cruel não ter funcionado.
Resumindo,a partir daí,a paz voltou a reinar entre galinhas e cachorro,e como em todo final feliz,Vielú libertou-se do triste vício de ingerir ovos "in natura",porém,(e isto consta “dos anais “ da rua do Fomento) tôdas as manhãs,passou a postar-se apetitoso na porta da cozinha à espera de um ovo cozido,"no ponto!"
E com um detalhe:servido "na boquinha" pela dona da casa.





Esta crônica é uma carinhosa brincadeira com a querida dona Vica,uma das poucas pessoas daquela época que ainda residem na antiga rua do Fomento. Atualmente quem desfruta dos mimos antes dedicados à Vielu é "Meiga",sua cachorrinha de estimação.

A criação de carijós foi desativada.Ela ,entretanto, continua dando gostosas gargalhadas.