Filho de costureira

Meu pai era pedreiro no tempo em que nasci e com ele convivi. Antes de partir para o plano espiritual me ensinou o básico da profissão. Minha mãe é costureira, embora hoje pratique pouco, visto que goza merecida aposentadoria. Mas não se afastou de tudo. Ainda faz alguns reparos para “os de casa”. Minhas tias também dedicaram parta da vida à máquina de costura. Tecidos, linhas e aviamentos comporam meu universo infantil.

Como era natural, toda costura produzia os retalhos que mamãe guardava numa caixa de papelão. Às vezes, escondido entrava nela e nadava no meio das tiras cujo cheiro de tecido até hoje trago na memória. Quando vejo crianças brincando em piscina de bolinhas, lembro-me da minha de retalhos. Outra coisa de hoje que me recorda as tirinhas das sobras de costura são os “band-deides”. Meus machucados de garoto travesso eram todos “curativados” com tiras de retalho. Minha mãe nem sabia que eu machucava. Quando percebia, eu já estava com o retalho amarrado na ferida. E não tinha vergonha (hoje tenho!) de sair na rua com aquele pano amarrado seja no dedo, cabeça ou qualquer outro lugar do corte.

Cidade pequena, todas as lojas de aviamentos me conheciam. Volta e meia estava eu lá olhando por sobre o balcão nas pontas dos pés com uma tira de tecido na mão e uns trocados para comprar uma linha, botão ou zíper que combinasse. Às vezes a linha não dava e lá ia eu com o retros vazio para acertar na cor e no número da linha. _Drima corrente, não se esqueça! As outras marcas não prestam! Dizia minha mãe. Um serviço que gostava era cobrir botões. Ia com um pedaço do tecido e o cara da loja com uma maquineta fazia botões revestidos com o tecido da costura em questão. Achava mágico e queria poder fazer aquilo. Nunca me deixaram.

Outras tarefas de minha função “Garoto Mandalete” (expressão que aprendi com minha mãe) eram avisar às clientes de minha mãe, na maioria mulheres, que a roupa estava em ponto de prova. Nem sabia direito o que era ponto de prova. Apenas repetia conforme minha mãe havia recomendado. Ponto de prova, só mais tarde fui entender que tal expressão significava que era hora de experimentar a roupa.

Ia correndo no endereço avisar a “Dona” e me divertia em tocar companhia, bater na porta e chamar pelo nome, que muitas das vezes soavam comicamente: _Dona Toró!! _Pixica!!, _Geralda da Tóta!! _Maria do Pedro Bala!!!, etc. Engraçado era que a maioria das mulheres tinha o nome ou apelido do marido atrelado aos delas. Até minha mãe era a Aparecida do Doca.

Toda casa tinha seu alpendre com folhagens, samambaias, antúrios. Alguns alpendres clássicos abertos com para peito de balaústre das antigas. Outras tinham seu alpendre que classifico no linguajar de hoje de sinistros. Tinha medo de permanecer neles. Costumava chamar e correr pra rua esperando que me atendessem.

Nas minhas andanças de mandalete eu ficava viajando em minha imaginação. Sempre fui bom nisso, bom até demais!

Dias haviam que eu tinha que voltar ao mesmo lugar mais de uma vez, seja loja de aviamentos ou casa de clientes por algum motivo de dúvida ou engano meu, com assuntos ou peças dos vestuários alheios. Um exemplo clássico era quando ia comprar colchetes. O cara da loja perguntava:

_Colchetes de pressão ou de gancho?

_"Xiiiiiiiii, num sei não!"

Corria lá em casa pra saber. Nessas horas eu sonhava em ter um telefone sem fio, para que da rua, pudesse avisar ou perguntar minha mãe alguma coisa. E antes do celular estourar ganhei de um dos meus irmãos um “Alk Tok - Made in China” que só me fez passar vergonha e nunca resolveu esses probleminhas de comunicação.

Sonhava que meu velho skate preto de madeira poderia ser motorizado com banquinho e guidom. Ou sonhava com uma Bike que nem andar eu sabia. Caramba!, hoje recordando vejo que eu era futurista.

Certa vez cismei que devia trabalhar fora. Ouvia minha mãe dizer que a mãe dela dizia: “O trabalho dignifica o homem!” Daí encasquetei aos sete anos que tinha que trabalhar. Carlos Henrique era Filho de um lojista. Loja famosa na cidade. E em particular com Carlos Henrique expus minhas queixas de desempregado sem nunca ter tido emprego antes. E ele na maior boa vontade: _“Vamos trabalhar na loja do meu pai!!!”

Eureca!!! E fomos mesmo. Após insistência do filho o pai lojista me empregou a um salário combinado de acordo com minhas aspirações de moleque colecionador de bolinhas de gude. No meu primeiro dia não fiz nada, na verdade não me deixaram fazer nada. Chegava um cliente eu olhava pra ele e ele olhava por cima de mim e logo logo vinha uma moça mais velha de casa e atendia a pessoa. E eu ficava com os olhos sobre o balcão nas pontas do pé, só que agora do lado de dentro. Ao final do meu primeiro dia de expediente topei com minha mãe na porta da loja. Pegou-me pelas orelhas sem ao menos eu saber por quê.

“_Menino como você some de casa assim?

_Mãe eu tava “trabaiano”!!!

_Que Mané trabalhando! Eu preciso de você lá em casa. Vai trabalhar pra ninguém coisa nenhuma.

E assim encerrou-se meu primeiro contrato de trabalho. Contrato de boca, nada de preto no branco. Afinal na ocasião, eu nem sabia dessas formalidades da lei. E por minha ignorância nunca recebi meus direitos trabalhistas: aviso prévio, férias proporcionais, décimo terceiro e etc.

Retomado minhas funções de “Mandalete” voltei eu para os avisos de ponto de prova, de costura pronta e acabada, aquisição de zíper, linhas, colchetes e botões. Conformado com o retorno à função, me contentei com meus honorários estipulados por minha mãe. Ela escrevia sempre um bilhete para a cliente que eu levava contente junto da roupa pronta em sacola que eu sempre pedia de volta. Na época sacolas não eram como hoje, uma praga. Neste bilhete mamãe descrevia a mão-de-obra dela e os aviamentos extras que a cliente não havia levado na contratação dos serviços de costureira. Sempre o preço final tinha uns trocados que mamãe me dava. Eles eram meus honorários. Feliz voltava eu pra casa com o dinheiro e a sacola vazia.

Certa vez entreguei uma costura para Dona Maria do João Porteiro. Epiteto este que eu não podia citar na entrega. Corria o risco de sair de lá fugido. Mais esta entrega não me sai da memória. Não por causa do apelido não aceito pelo dono, mas pela sacola. Como já disse sacolas eram coisa rara. Principalmente na cidadezinha que eu vivia. Pra se ter uma idéia a primeira vez que levei pão em sacola para casa, eu já tinha uns 14 anos. Antes só embrulhados em papel.

Mas voltando a sacola da costura de Dona Maria do João Porteiro, empolgado que tava do trocado que receberia no ato da entrega, esqueci de pedir a sacola de volta. Mamãe me perguntou em casa. _Mas porque você não pegou a sacola? _Esqueci !!! Foi minha resposta. Na esperança de recebê-la de volta dei tempo ao tempo. E o tempo vem correndo até hoje. A sacola era boa, resistente com alça feita de uma mangueirinha cristal, tipo aquelas de aquário e era da ótica do Senhor Dival lá de Guarulhos-SP. Meu irmão Geraldo até hoje faz óculos lá, e minha mãe também. Os meus primeiros óculos também foram feitos lá. A sacola tinha algo de sentimental. Até hoje, mais de vinte anos depois, falou em sacola eu me lembro da sacola da Dival Ótica.

Nas horas de folga, de minha mãe, eu sentava no pedal da máquina de costura e imaginava que ela era um carro. Brincava de dirigir. O volante era a roda que pelo pedal fazia girar a máquina. Quando Geraldo deu uma máquina elétrica pra minha mãe meu carro de imaginação modernizou, pois a máquina ficava sobre uma caixa de aglomerado que tinha porta. Tipo um baú quadrado que aberto se transformava na máquina de costura da mamãe. Daí eu entrava, me comodava no pedal que nuca parava. Balançando minha bunda pra cima e pra baixo a cada giro do volante. Eu fechava aporta do carro-costura e viajava...

Gleisson Melo
Enviado por Gleisson Melo em 18/03/2012
Reeditado em 16/01/2022
Código do texto: T3562160
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