Notas de um caderninho velho.

Era dia na casa com paredes de tijolos nus. O pequeno abria devagar os olhos, se espreguiçava e nem reparava nos fios soltos que sustinham a lâmpada apagada. Era como um hábito não reparar aquele mundinho que o trancava. Digo que o trancava porque, ao contrário do outro, o mundo que o cercava e que estava vivo, este não era interessante: se chovia era de grado, se não, era nada de mais.

O pão que a avó mandava, macio e de casquinha bem torradinha, derretia a manteiga mole quando mergulhado no café doce que a mãe fazia – e fazia assim, doce, porque era de agrado no encharque suculento. A mãozinha acompanhava o pão quando saia da xícara, procedimento maquinal para não derramar café na mesa. Nunca derramava. Cada gotinha doce daquele café era uma maravilha, o pequeno até esquecia que era cedo.

Sentava numa carteira dura, suja e mal montada. Era ai que o gostinho das manhãzinhas ia esmaecendo. Me ocorre agora que poderia ser por isso que o pequeno se extasiava no café da manhã, para ir consumindo aquele gostinho bom nas horas tristes que corriam a entediá-lo até o meio caminho do dia. Inda assim, não se queixava de mais. Nunca queixava-se dessas coisas, desses tédios. Riscava a folha branca, enchia-as de coisas óbvias que teimavam dizer “ensiná-lo”.

Não gostava daquilo não. Gostava era das coisas do mundo. Entendia mais do vento ao correr de bicicleta que sentado atrás duma janela fechada. As horas duplicavam e reduplicavam-se e nunca que chegava a hora de encontrar a avó. Para matar o tempo, fazia tudo o que lhe pediam e fazia mais: fazia tudo que lhe pedia a mente e lhe saiam, das linhas impressas, máquinas voadoras e corredoras, máquinas planetárias, máquinas. Tudo com uma capacidade e uma sabedoria de graduado, era tudo ali muito possível.

Enfim corriam as horas e acabava o castigo. Na mesa da avó tinha comida vária e o passatempo era encontrar uma ruim. Quando os primos andavam por lá tagarelava sem parar, quando não, poucos pios. Apesar dessas situações, gostava. O bife suculento tinha sabor de pão caseiro com manteiga derretida no café doce. A couve refogada, que torcia o nariz dos primos, tinha sabor de pão caseiro com manteiga derretida no café doce. O suco de abacaxi tinha sabor de pão caseiro com manteiga derretida no café doce. Comia tudo isso e comia de tudo. Dava gosto ver o pequeno comer toda aquela verduraria e não botar um docinho de cacau na boca. Fazia isso porque enchia a barriguinha de pão caseiro com manteiga derretida no café doce, até não caber mais. Tinha um dia inteirinho pela frente.

As paredes de tijolos nus davam um boa tarde torto e feio, mas eram ainda aconchegantes. Era tardezinha, era liberdade. A quentura do fundo da casa de paredes de tijolos nus era também murada de tijolos nus. Mas ali era uma beleza magnífica. Era onde o pequeno era gente grande, onde as máquinas perdiam o contorno de tinta e ganhavam as três dimensões da imaginação. Era ali um aglomerado de mundos, de terras e mares, de coisas, de possibilidades e de plena felicidade.

O pequeno se sujava todo. O suor fedia graxa e lhe tirava todo o cheiro de menino – ora, que o gênio já não mais o era. As maquinas voadoras voavam, as navegadoras navegavam e as corredoras corriam. Os sonhos do pequeno se realizavam em placas de isopor e peças de carros velhos. Era lindo aquilo, era felicidade. Era pão caseiro com manteiga derretida no café doce, e era muito saboroso.

Mãe a pai tornavam ás paredes de tijolos nus. O pequeno era sempre surpreendido lá na sujeira, fedendo de alegria. Era assim todos os dias, mas não é mentira a surpresa: o pequeno sempre se esquecia, nunca sabia.

Saltava feliz a mostrar o que projetara, desenhara, pensara, sonhara e acabara por realizar naqueles restos de maquinaria sem importância. Era proeza enorme aquilo tudo e queria que assim vissem. Lançava a máquina voadora no ar e ela alçava vôo lindamente. Soltava a máquina navegadora nas águas e ela navegava como nenhuma outra. O sorriso do pequeno esperava o sorriso da mãe, a admiração técnica do pai, um dedo amigo que limpasse carinhosamente a o óleo velho que lhe escorria, preto, por cima de um olho.

Vinha a chinela. Os sabores do dia perdia todos, esquecia todos, esquecia os projetos, os desenhos. As máquinas era obrigado a destruir. Tinha de engolir os sonhos e continuar despercebido, como um menino comum. Era doída essa parte do dia e era a única que não era surpresa, porque esta ele apenas esquecia. Quando os sorrisos dos moradores da casa de paredes de tijolos nus lhe falhavam a correspondência, lembrava tudo do dia de ontem, da semana passada, da vida de menino até ali.

A partir daquele momento tomar-se-ia um banho quente, de cabeça vazia. Comer-se ia um jantar quente sem sabor nenhum, que deixaria ainda a barriga vazia. Esperar-se-ia ansiosamente o sono. Desejar-se-ia o sonho e, ainda mais que isso, o outro dia próximo. O pão caseiro com manteiga derretida no café doce da infância que não sai da cabeça dum grande menino.

Vinicius de Andrade
Enviado por Vinicius de Andrade em 22/03/2012
Reeditado em 22/03/2012
Código do texto: T3568883
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