Modus operandi

Podemos dizer que o transporte público da cidade de Astenia nunca vai conseguir fazer frente, por exemplo, com os utilizados por europeus ou japoneses. Enfim, depois do ônibus em que eu estava quebrar e ficar parado no meio de uma avenida, e seu motorista mostrar-se mais perdido que galo em um galinheiro resolvi descer e enfrentar a pausada e forte chuva que caia sobre aquela cidade moribunda.

Meu destino não ficava longe daquela inesperada parada, e com o guarda-chuva aberto tentei proteger-me o máximo daquelas águas que vinham tanto de cima quanto de baixo. Com passos rápidos procurei acelerar aquele trecho de marasmo urbano sentindo o calor que Dante deu de presente aos moradores e foi arrefecido pela chuva que chegava e parava em uma teimosa insistência de uma criança a brincar em dias como este. No meio do caminho uma coisa me prendeu a atenção. Um ônibus com letras de neon vermelha mostrando o destino o qual estava a serviço: CEMITÉRIO. Logo veio à mente aquele transporte cheio de mortos-vivos, mortos que parcelavam sua vida por pequenas quantidades do bem necessário à sua condição de luta com a morte. Passou o primeiro, e não tardou passou o segundo, o mesmo destino, praticamente as mesmas pessoas.

Hora de voltar à terra do nunca. Já dentro de outro ônibus, este funcionando, pus-me a deixar levar onde verdadeiramente queria estar. O motorista girou as chaves e o motor com um rangido vivo colocou-se a deslizar o asfalto. Perto da terra prometida o astro-rei conseguiu penetrar seus raios luminosos por dentro das cinzas e pesadas nuvens que mesmo assim se faziam presentes. Chegando... Pode-se ver a bandeira esfarrapada do munícipio tremular majestosamente do alto de oito andares do prédio póstumo, e é provável no sítio que um dia já foi encantado, não mais se ouvem os gritos de crianças que estavam a festejar àquela fantasia. Monteiro de um lado da cidade parece conversar com o bandeirante que se encontra do outro lado, estes dois divididos por uma artéria humana que flui o sangue do país em sentidos opostos.

- Que cidade ingrata que descobriste...

Monteiro olha com seu semblante sério e austero, e mesmo de costas para seu emissor, o bandeirante ouve passivamente.

- Não valorizam o que o pai faz a um filho!

Lobato insiste e o bandeirante em silêncio apenas ouve. O desbravador de terras olha fixamente aquela aglomeração suburbana e aperta firme a base de sua arma, que um dia lhe serviu de grande ajuda. Um orgulho triste se faz parecer nos olhos estáticos à sombra de seu chapéu.

Emília puxando Monteiro pela manga de seu terno insiste à indiferença das palavras não proferidas.

- Lobato, por que ele não responde?

Os lábios do escritor sibilam e o silêncio é entendido por todos. Esta “conversa incompleta” já perdura há anos.

Mas e o ônibus que prometia chegar ao cemitério? Chegou ao derradeiro destino faz tempo! Seus usuários mortos-vivos descansam em sua morada, que nem eterna podemos ter a convicção de afirmar.

Chronus
Enviado por Chronus em 22/03/2012
Reeditado em 14/04/2012
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