DESROTINANDO
 

 "No tempo em que eu jogava futebol, levantava de manhã cedo já chutando o urinol!" 
 
A
 frase, bastante usada pela molecada nos anos '50 e '60, não  dizia respeito ao indivíduo estressado,  mas, ao decidido, àquele a quem se dá hoje a alcunha de "irado", ou seja, quem hoje se destaca entre outros como sendo um cara legal - contrariando, portanto, a própria definição encontrada nos dicionários.
 Pois, hoje eu acordei com vontade de chutar o penico! - não por me achar "o cara", nem tampouco "o nervosinho", mas, apenas por querer sair da rotina, "desrotinar".
 (...)
 Passando a mão no rosto e sentindo a barba apontando, resolvi: "- Hoje eu não vou fazer a barba! E mais: nem vou tomar café! Ora, todo dia de manhã café, café, café... Não! Hoje, não! Hoje eu vou preparar, no capricho, "aquele" chazinho inglês, comprado ontem."
 
(...)
 Coisa chic é o sentar-se à mesa (redonda, não muito grande) coberta com toalha de linho, branca e lindamente bordada, onde se destaca o aparelho de chá em porcelana fina (daquelas que, na translucidez do fundo da chávena se veem e se leem, enevoados mas claros, o brasão do fabricante e os dizeres "Made in England") e, a acompanhá-lo, colherzinhas de prata, biscoitinhos delicados e cubos de açúcar cristalizado...
 ...Ush! É coisa de lord!
 Veio-me à cabeça ter visto um filme com história possivelmente de Agatha Christie e possivelmente interpretada por David Niven: ele, com a classe indiscutível que sempre teve, derramando água fervente e preparando,  na temperatura adequada, a infusão daquela "essência herbórea" possivelmente provinda d'alguma das possessões mantidas pela Coroa Britânica por esses mundos... Na chávena, o sachet de tamanho adequado, e não esses "envelopes" que conhecemos.
 ...(No desenrolar dos fotogramas em preto e branco, dava para se "sentir" o bouquet da essência, volatizado, carregado pela fumacinha úmida, subindo em slow motion!...)
 ...Ush! Coisa de lord
 ...Digo melhor: coisa de Sir! 
 ...(Saibam, os que não sabiam, que James David Graham Niven era Sir verdadeiro, honorificado merecidamente por Sua Majestade. Antes mesmo de receber a honraria, ele já portava estilo de aristocrata requintado: esbelto, olhos claros, bigodinho fino, cabelo bem penteado e engomado, aprumado no seu todo de corpo inteiro - não sendo esta a compleição da maioria dos aristocratas ilhéus, que, pelos retratos, imagino seja constituida de gorduchos de cabelos vermelhos e bochechas rosadas.
 ...(E como era bom de filmes, o David!)
 ...Bem, se não era David Niven, se não Agatha Christie, era outro ator, era outra autora ou autor... Não importa. Acho mesmo que tal filme é pura imaginação minha. De qualquer forma, eu, bolachudo, de barba por fazer, é que jamais conseguiria beber chá com tanta elegância, mesmo me retorcendo nas maiores mesuras: o David (ou quem quer que fosse naquela cena) segurava o nobre bule com a mão direita (perfeito!) a despejar a água fervente... - que, tocando a pele delicada do sachet, traspassava-a, provocando, no espaço do salão luxuoso, a evolução dos eflúvios inebriantes liberados daquela essência indiana, ou chinesa (ou lá de qual procedência fosse, mas sempre de uma das possessões da Coroa), enquanto o dedo médio da sua outra mão, estrategicamente colocado sobre o ápice da tampa do aludido recipiente firmava-a, evitando a possibilidade de episódio que pudesse estragar a demonstração da sublime arte de bem servir-se o chá. Mais: para que o deslumbramento da cena não ficasse somente nos perfumes e movimentos da fumaça, lá estava também o mindinho esquerdo, coadjuvando o médio - bem podendo ser a principal coisa a ser mostrada, pois, rico, o mindinho apresentava-se anelado de ouro e diamantes!...     
 (...)          
 Decidido a estas duas coisas - não fazer a barba e não tomar café -, levantei-me, abri a janela e cumprimentei: "- Bom dia, Sol, meu amigo!" - e lhe dirigi algumas outras palavrinhas rápidas.
 Fui ao banheiro, lavei o rosto, olhei-me... Barba de quarenta e oito horas... Parecia ter pintado as faces com cinza... 
 ...Em seguida, fui à cozinha e coloquei água a ferver, pedindo à minha mulher: ;"- Quilidinha, quando a água estiver pronta, me chame. Não vou fazer a barba."
 Enquanto esperava, ausentei-me um momentinho, sempre esfregando o rosto, incomodado. Aí, então, apareceu-me um velho conhecido e entramos num papo de divagadores, de dois à toa na vida, dois aposentados. Aliás, na verdade, só eu divagava; ele, silencioso como sempre, prestava mais atenção ao cacoete (que não me deixava com a mão parada no rosto) do que à conversa sobre miudezas que eu desfiava apenas por desfiar.
 Nisso, minha mulher avisou: "- Apaguei o fogo; a água ferveu de quase secar; você disse que não ia demorar e está aí!..." ..."- 'Tá bem, já vou. Faça o favor: ponha outra água a ferver. Já vou..." - respondi.     
 (...)
 "Já vou, já vou"... - que "já vou" coisa nenhuma! Passaram-se três ou quatro minutos até eu retornar à cozinha e falar: "- Oi, quilidinha. 'Tô aqui! A água tá na fervura boa. Cadê o chá?" ..."- Que chá?" ..."- O que eu pedi a você que comprasse ontem."..."- Procurei, mas não encontrei. Você pediu chá inglês. Já viu supermercado de lugar pequeno vender chá inglês, meu amor?"  E me vendo sentado à mesa: "- Ué?! Você disse que não ia fazer a barba... Resolveu o contrário?"  
 
Surpreendido, passei a mão na cara: estava escanhoada...
 ...(Sim, senhor! Cavaqueando com o velho conhecido, eu, inconscientemente, ia passando a mão pra lá e pra cá no rosto, retirando a espuma, rapando a barba, enquanto o "velho" - minha própria figura no espelho - prestava atenção a todos aqueles movimentos mecânicos sem nada dizer, como coruja, que só observa, mas não emite opinião.)
 Corei, mas não revelei à quilidinha o que se passara; não lhe revelei a minha "viagem matinal", que começara com a vontade de "desrotinar".
  Decepcionado, olhei para a prateleira do armário; e lá estava, toda risonha, uma caixinha verde ironizando: "Boldo do Chile"... 
  (...)
 Sentado ante a mesinha redonda coberta com toalhinha de tecido xadrez, servi-me de café granulado instantâneo numa xícara de louça comum, despejando sobre ele água fervida em canecão de alumínio. 
 ...Passei manteiga no pão... - e pronto.
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  Chá inglês!... Qual!... (Sobre isto diria célebre vate daquelas terras, parodiando a si: "- Sonho de uma manhã de outono".
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  Ora bolas! Querem saber?
  ...Apesar de tudo, eu consegui "desrotinar", em parte: quando, ao abrir a janela, eu saudei: "- Bom dia, Sol, meu amigo! Como você passou a noite? Bem?" 

 
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Mar, 25.2012