A descoberta de Clarice
 
Não fui leitora de Clarice Lispector. Clarice é e era um ícone já em vida. Alguns aspectos de sua literatura me afastaram – era endeusada por aquele pequeno grupo de literatas com as quais eu convivia. Sempre fui arredia e assim nunca tive o prazer de conhecer a profundidade de sua obra. Até hoje não li nenhum de seus romances. Herméticos, diziam. Fui deixando para lá. Eu tinha dois livros dela – uma seleção de contos e Clarice na cabeceira, que também é uma seleção de contos. Agora tenho quatro e desconfio que minha prateleira de autoras nacionais vá continuar crescendo.

Estou lendo A descoberta do mundo. Falta um tiquinho só para acabar. Reúne os textos que ela escreveu e publicou no Jornal do Brasil, aos sábados, de agosto de 1967 a dezembro de 1976. Não é um livro só de crônicas – seu filho, Paulo Gurgel Valente em nota explicativa garante que esses escritos não se enquadram facilmente como crônicas, contos, pensamentos ou anotações. O que é um pouco tranqüilizador – ela escrevia, não se sujeitava a regras. Nem a denominações genéricas.

Nas orelhas, Sylvia Perlingeiro Paixão, Doutora em Literatura Comparada pela UFRJ, apresenta o livro. Ela retransmite as palavras de Clarice: Na literatura de livros permaneço anônima. Nesta coluna, estou de algum modo me dando a conhecer. O enigma aos poucos vai se revelando. Pois é isso que a crônica faz – revela. Esse trecho está na pequena crônica (12 linhas)- Fernando Pessoa me ajudando Noto uma coisa extremamente desagradável. Estas coisas que ando escrevendo aqui não são, creio, propriamente crônicas (...) Sim, como todos nós, cronistas do RL, ela também tem dúvidas. Não sabe exatamente o que é uma crônica. Por que isso a desagrada? Porque ela sente que nas crônicas o escritor se revela tanto que se torna íntimo do leitor. Eu concordo, de certa forma acabamos todos sendo vizinhos uns dos outros. Ela também teme a popularidade, que devassa a intimidade. Desfaz o mistério. Mas como Pessoa a ajudou? Dizendo: Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos.

Estou lendo Clarice e gostando. Algumas vezes eu até deixo de gostar.  Desgosto. Alguns textos, para o meu gosto, são até bem ruinzinhos. Mas é a minoria. Pelo menos, do pouco que já li. Clarice passou muitas dificuldades financeiras em sua vida, principalmente depois do fim de seu casamento. Para complementar sua renda trabalhou como tradutora, jornalista e cronista. Muitas vezes usou pseudônimo – Teresa Quadros (Comicio), Helena Palmer (Senhor). Ghost Writer, escrevia a coluna da atriz Ilka Soares no Diário da Noite. Ajudou Alzira Vargas a escrever a biografia do pai, Getúlio. De origem judia, foi despedida do Jornal do Brasil quando Ernesto Geisel foi eleito.

Quanto mais se lê Clarice, mais se percebe o seu mistério e maior se torna o desejo de decifrá-lo. Mas os grandes mistérios nunca se revelam por completo. Ficam no lusco-fusco. No limiar de qualquer coisa. Da descoberta que tudo clareia, da sombra do obscurecimento. Nasceu na Ucrânia e veio para o Brasil com pouco mais de um mês. Chegando aqui, seu pai mudou os nomes de quase todos os membros da família – Clarice, tornou-se Haia, que em idiche significa Vida. Em seu túmulo está escrito – Chaia bat Pinkhas – Haia ou Chaia não consegui descobrir. Bat, filha de PinKhas, que no Brasil chamou-se Pedro. Que também é o nome de seu primeiro filho, esquizofrênico. Casou-se com o diplomata Maury Gurgel Valente e se apaixonou por dois outros homens, que influenciaram bastante sua escrita – O escritor Lucio Cardoso, homossexual assumido. O cronista mineiro, Paulo Mendes Campos, casado. Mas tudo indica que também fosse lésbica. Seu cão Ulisses, companheiro inseparável, mordeu-lhe o rosto. Fumante inveterada provocou um incêndio em seu próprio quarto, com queimadura séria no rosto.

Clarice era uma bruxa. Daquelas bruxas cuja magia nunca acaba. Mesmo depois de morta, continua encantando. E nós, os encantados, buscando com sofreguidão o entendimento que nos livrará desse feitiço.