Cara ou Coroa

Cada vez me convenço mais de que é preciso que estejamos prevenidos para que não sejamos apanhados de surpresa. O rapaz ou moça bem apessoados, que nos venham pedir informações, podem ser assaltantes. O ilustre secretário de Governo que, durante a sua palestra, demonstra domínio e conhecimento sobre os assuntos relativos à sua pasta, convencendo-nos mediante o brilhantismo da sua apresentação, pode estar mentindo. O amigo nosso, tio e padrinho de uma menina com aparentes deficiências mentais ou psicológicas, que se mostrou tão preocupado com o desenvolvimento da garota, pode na realidade nem estar ligando para ela, ou teria acompanhado-a na festa em que ela fora sozinha ou pelo menos teria ido buscá-la no final da festa.

No entanto, para que estejamos prevenidos a respeito de fatos que nos surpreendem, é preciso que estejamos preparados. Que possamos suspeitar que algum tipo de surpresa possa acontecer. Se não tivermos condição alguma de imaginar que muitas coisas ocorrem diferentemente do pré-estabelecido ou do que a gente espera, então poderemos nos sentir “vendidos”. Quando nos tirarem a venda dos olhos.

Os formadores de opinião contam com o pré-estabelecido. Mas não só eles. Também a mídia, o governo, os empresários, a Igreja, todos os segmentos sociais, a propaganda enfim. Todos contam que estaremos sempre de olhos vendados.

Vejam o que sucedeu a um amigo nosso:

Jovem ainda, durante o amargo período da ditadura, foi preso e recolhido a uma delegacia sob a alegação de que vinha lendo obras de Guevara, Marx ou que fosse correligionário de Brizola. Lá se encontrava um preso, acusado de assassinato. O amigo havia testemunhado contra esse preso, um negro forte e já homem feito. Temendo pela sua vida, a partir de alguma represália por parte do negro forte, solicitou ao delegado:

- Doutor, o senhor precisa me tirar daqui. Esse cara vai acabar me enforcando. Testemunhei contra ele.

Nosso amigo soube mais tarde, para a sua surpresa, que o preso que temia, de origem humilde e pouco letrado, acabou defendendo-o:

- Doutor, o rapaz pode ser o que for, mas comunista ele não é. Trata-se de um moço estudioso, educado e bom filho de família.

Como se todo comunista fosse, em princípio, um vagabundo, sem educação e mau filho de família.

Isso provavelmente era o que estava pré-estabelecido na cabeça do preso acusado de assassinato. E ele não tinha condições de reprocessar esse entendimento. Não lhe foram levadas informações que o capacitassem a ter outra opinião. Ou não teve condições de vivenciar situações que o ajudassem a entender que o comunista não era um marginal. Ou que não estava recolhido a uma delegacia pelas mesmas razões que estavam os que furtam alguma coisa ou tiram a vida de outrem em função de uma briga de rua, no trabalho ou no trânsito.

Claro que esse entendimento não era estranho ao delegado. Esse, sim, em condições de saber que o preso comunista nada tinha a ver com o preso acusado de assassinato, à exceção do fato de ambos acharem-se presos. Para ele, no entanto, era natural que essa mentira continuasse com o aspecto de verdade, pois as ordens dos donos do poder precisavam ser cumpridas.

Não sei se este é um exemplo feliz. Mas ele nos ajuda a mostrar que, em diversas situações de nossa vida, os problemas já nos são apresentados com solução. E nelas vamos acreditando, se não exercermos, como os virginianos, o nosso poder de crítica ou de duvidar do que tivemos que aprender. Na verdade um poder inato a todo ser humano.

Talvez devêssemos orientar nossos filhos nesse sentido. É possível que se tornassem dessa forma mais senhores de si na idade adulta. E que descobrissem que a mentira e a verdade podem ser as duas faces de uma mesma moeda que, jogada pro alto, cairá sobre o chão ora como cara, ora como coroa.

Maricá, 24/03/2012

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 26/03/2012
Reeditado em 21/06/2012
Código do texto: T3576450
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