Liberdade para as borboletas

Eu passava na esquina da rua Santa Luzia com Graça Aranha diariamente às 18:30H. Fazia pré-vestibular de Medicina. Andava sempre meio chateada da vida, levara pau no ano anterior e, no fundo sabia das limitações do ensino público. Nessa esquina fui abordada por um mendigo, que hábil na cadeira de rodas insistiu para que eu lhe desse um cigarro, ao que atendi chateada, pois como não tinha grana para comprar um maço inteiro e teria que rachar um cigarro mais fraco com uma colega do curso ou roubar um maço do papai, de uma marca mais forte.

Não sei bem porquê, mas passei a ir 15 min. Mais cedo, curiosa, para conversar mais com o seu João. Inclusive, ele começou a dividir de cigarros comigo.

Enquanto fumávamos, trocávamos nossas estórias, infortúnios e nossa grande fé pelo que compreendíamos ser a vida - o caminho da liberdade.

Contou-me que viera ao Rio para tratar uma fratura inflamada no Hospital do INPS da época, especializado em Ortopedia.

Primeiro precisou aguardar dois meses para a consulta e depois, um mês para a cicatrização óssea, além de ganhar uma cadeira de rodas, que ficou sendo a sua casa e veículo.

Ele arranjou um biscate para se sustentar na feira livre da Glória. Todos o conheciam e em pouco tempo estabeleceu uma camaradagem, diferente do que ele fôra algum dia. A sua casa, a família e o passado foram ficando distantes demais, para a viagem de volta, pois o que o separava não tinha mais preço, nem estrada de retorno.

Numa noite fria de final de primavera, trocamos fotografias: a sua sorridente na cadeira de rodas e eu séria na inscrição do unificado.

Até que certo dia, não o encontrei mais ali - procurei uns mendigos (se for este o termo certo para aqueles que vivem pelas ruas, mas trabalham honestamente). Eles me disseram que o João andava meio sumido, nada mais. Algum tempo depois, eu achei uma carteira de cigarros vazia que embrulhava algo, bem no lugar onde costumávamos nos ver. Peguei, enfiei na bolsa e tive que sair rápida, pois naquele dia faria um vestibular simulado em que teria certeza da minha possível aprovação.

Em casa abri o pacotinho que continha um broche que era uma borboleta de ouro, com três brilhantes em cada asa e dois olhos em pérola legítima, como constatei depois.

Eu a vendi para minha avó paterna para fazer a matrícula da faculdade.

E nunca mais o encontrei.

Marise Cardoso Lomba
Enviado por Marise Cardoso Lomba em 19/07/2005
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