O PUM E A MORTE JOGANDO XADREZ

Ontem li um livro e assisti a um filme. Foi isso tudo o que fiz durante o dia todo, Parece pouco, mas, não é. Meu dia é muito longo. Começa por volta das três e termina entorno das 22 horas. Um pouco mais, um pouco menos. São quase 20 horas de muito o que fazer. E haja coisa pra fazer. O livro, pois, consumi em dez horas já que tem pouco mais de100 páginas. Seu conteúdo trata de um assunto divertido e nauseabundo – sim tem tudo a ver com essa palavra em todos os sentidos, como logo perceberão. Não se trata de literatura, nem pretende ser um ensaio científico, pois diz o autor que “a ciência é coisa séria, mas pode divertir. O humor, apesar de divertido, pode ser sério e ensinar.” É verdade, diverti-me e aprendi muito sobre o pum, que é como chamamos com intimidade e educadamente os gases intestinais ou peido, jeito mais chulo e vulgar. Logo no início conta o autor, o médico gaúcho Guenther Von Eye, escreve que Heródoto, o pai da história, em seu livro Euterpe, conta que quando o rei egípcio Apries invadiu a terra dos Cirineus mandou um general para acalmar o povo revoltado. Estranhamente o general invasor foi aclamado rei. Apries sentindo-se traído mandou outro general para capturar o traidor e leva-lo a presença dele. As negociações entre os dois generais deram-se em campo aberto e com os dois montados cada um em seu cavalo. Não houve acordo. O general, agora rei dos Cirineus,ajeitou-se na cela e erguendo uma perna soltou um ruidoso peido dizendo: leva isso para Apres.

Nesse momento, nesse trecho do livro, Vulpino Argento, o Demente, e suplente de senador não eleito, que por cima do meu ombro tomava carona na minha leitura, me interrompe.

- “Divino Mestre – detesto quando ele me trata assim - pare de ler e imagine deputados e senadores ajeitando a bunda nas confortáveis poltronas dos seus gabinetes e, em conjunto, soltando um estrondoso peido nacional, dizer aos assessores: levem isso para o povo.”

- “Ficção em estado bruto!” – respondi sem muita convicção e voltei ao livro. O assunto é mais sério do que imaginava e tem variáveis que jamais imaginei, dado que nunca me importei com essa questão além do necessário; devidos cuidados com a minha natural e comum flatulência e as experiências que tiveram meu nariz e meus ouvidos com a flatulência alheia. Todas desagradáveis e sem nenhuma graça. Mas Von Eye, que é um especialista no assunto, trata dos gazes intestinais e dos males que provoca, com graça.

- “Quanto peidamos por dia?”, indaga e responde no capitulo “Perguntas Frequentes em Consultório Médico”.

- “ normal é que a pessoa adulta elimine em torno de 17 peidos, em 24 horas, algumas mais outras menos. Cada peido contém cerca de 150 a 200 ml de gás. O número de peidos pode variar de pessoa para pessoa. Existem pessoas que soltam 400 num dia. Outro registro em três anos a média de 11 por dia. Os gases que a pessoa elimina quando vai evacuar, geralmente não são computados e registrados como peidos. Dos gases produzidos no interior das tripas, só 10 por cento é eliminado via anal.”

Sinceramente não sei como pude viver todos esses anos que tenho, sem saber disso. Nem sei como outras pessoas doutas em diversos saberes complexos como a física quântica,como as dobras do universo ignorem esse assunto e tenham suportado viver sem saber sobre essas escatologias gasosas intestinais.Surpreendente.

O filme, sim, depois da leitura do divertido do livro “O Pum é Coisa Séria”, é menos divertido, mas ainda assim engraçado. Todavia dizer que “O Sétimo Selo”, tido como obra prima de Ingmar Bergman é engraçado, pode ofender cinéfilos e fãs do cineasta sueco. Para quem não viu, resumo a história. O filme é de 1956 e em preto e branco, o que evidentemente não o desmerece,conta que ao retornar das Cruzadas o cavaleiro Antonius Block encontra o país devastado pela peste negra. Refletindo sobre o significado da vida, já com sua fé em Deus abalada, surge-lhe a Morte. Havia chegado sua hora e ele terá de partir com ela. Porém, tentando ganhar tempo convida a Morte para um jogo de xadrez. Se ganhar ele fica, não partirá com ela. A Morte aceita o desafio, já que não perde nunca.

O final da história é obvio e pelo filme se arrasta um debate pseudofilosófico sobre Deus, o Diabo, a existência humana, a fé, a religião... e outras angustias que, para a maioria das pessoas, só se encontra conforto na religião. E não é de hoje. Na Idade Média tudo era entendido através da religião e é com esse entendimento que Antonius, o cavaleiro cruzado, questiona o papel de Deus e do Diabo, essas entidades metafísicas, que apenas entre nós, põem em prática seus poderes de vida e de morte. Inútil jogar com a Morte, ela ganhará sempre. Inútil discutir a morte fora da religião. E é nessa perspectiva de religiosidade que, no filme, os personagens homens é que falam em nome de Deus e do Diabo porque o que é sagrado é mudo.

De resto, fotografia pesada, quase sufocante, cenários, interpretações, com caras e bocas de Matilde, e direção, estão de acordo com o cinema sueco de 1956. Um bom filme com excelente ator principal, o depois famoso Max Von Sydow, e primorosa direção e algumas situações engraçadas.

Desde quando vi o “O Sétimo Selo” pela primeira vez até hoje, já se passaram 50 anos e eu não pensava assim. Como em todas as obras, livros que lemos, filmes e peças teatrais que assistimos e nos maravilhamos na juventude, a revisita pode trazer alguma frustração no apogeu da vida. É quando percebemos que, quando moços acreditamos nas pessoas e nas utopias; seguimos e copiamos líderes e até tentamos torna-las realidade. Alguns passos adiante, já com os pés na meia idade, selecionamos aqueles em quem acreditamos e sabemos que utopias não se põem em prática. E nos últimos passos da jornada, mais experientes, temos a sensação, às vezes inconveniente, de que já temos respostas para quase tudo: os heróis se foram, os líderes restam poucos. As utopias são o que são em si mesmas, e as ideias alteram-se, modificam-se, adaptam-se aos tempos. Restam, enfim, os princípios e a certeza de que por falta de tempo ninguém jamais poderá ter, saber e conhecer tudo o que se pretendia naqueles tempos de delírios intelectuais mas, sim, apenas o necessário possível. O tempo, todavia, esse aliado da morte, tudo pode. Refaz, apaga, cura e conserta. Portanto não economizemos tempo, o que é impossível, nem tente mos ganhar tempo, o que é absurdo. Vivamos, e vivamos bem, porque essa é a maior vingança contra o tempo.

Vingança, aqui, não se refere àquela prática inadmissível judaico-cristã que se reconhece como falha de caráter, carregada de ódio e culpa, nem aquela da doutrina espírita que entende ser ela uma “ação maléfica sobre nosso físico, com repercussão no espírito imortal que somos”.

Essa vingança, a que me refiro aqui, não; essa é a vingança contra o tempo inexorável. Ela é racional e doce e bem aproveita o tempo, carpe diem, quase epicurista. Essa vingança é viver o estado lúcido da “ataraxia” e da “aponia”, que nos ensinou Epicuro de Samos, sem confundir-se com a concepção hedonista pejorativa dada pelos iluministas. Viver bem é a maior vingança.

CESAR CABRAL
Enviado por CESAR CABRAL em 03/04/2012
Reeditado em 04/11/2012
Código do texto: T3591706
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