Folhinha de Modinhas para um Ano Bissexto

"O povo sempre me faz rir, quando entende que deve ser juiz e carrasco ao mesmo tempo. E rio-me, e rio-me a bom rir, porque entendo que é melhor me rir do que chorar.

E se eu hei de zangar-me, arrepelar-me (arrancar-me os cabelos), consumir-me e amofinar-me (afligir-me) - é melhor que ria a bom rir, como fazia o amável e bem velho Demócrito, sem ser o do Amor da Arte - do nosso Ginásio Dramático.

E porque não hei de rir-me, quando tudo que vejo, bem analisado, bem pensado e bem espremidinho faz vontade de rir até a um defunto? O mundo vai em progresso, a vida corre em regresso, mas as risadas animam tanto que não rir seria morrer.

Uns censuram a política com a maior impolítica (incivilidade) do mundo; outros chamam disparatadamente as decisões jurídicas. outros chamam de fundamentalistas as crenças religiosas e assim a tudo por diante, e rio-me, rio-me sempre porque o mundo é assim e ninguém pode mudar a força do destino."

O texto acima, atualíssimo, consta da "Folhinha de Modinhas para o Anno Bissexto de 1868" (1), num tempo em que o Verão se chamava Estio. As "Folhinhas" eram um tipo de "Almanaque" da época (como o "Almanaque do Pensamento", por exemplo).

Aliás, uma etimologia de 'folhinha' descrita por 'Silva Tullio' consta em um "Almanach" da mesma época(2):

"Por que é que na língua portuguesa se designa pela palavra 'folhinha', o calendário anual dos santos, festas móveis, lunações, marés, etc.? - Ainda que seja um livro de muitas páginas, e tenha qualquer outro título, ninguém o nomeia senão por 'folhinha'. Há 'folhinhas' de porta e de algibeira. Mas nem as de porta são folhinhas, porque têm dimensões de 'fólio', nem tampouco as de algibeira, que são em volume.

Pode ser que das 'tabellas' que os romanos penduravam nas portas, com a indicação dos 'dias fastos e nefastos', traduzíssemos o diminutivos 'tabellas' (taboinhas) por folhinhas do nosso papel.

Todavia os antigos 'lunarios portugueses' tinham muitas folhas. Que saibamos, o autor do 'Thesouro de Prudentes', que era o 'Almanach de Lembranças' do 'tempo dos Filippes', publicou em 1614, as festas móveis do ano, em verso, numa meia folha de papel. Seria esta a primeira 'folhinha de porta'."

A propósito, um dicionário de 1755 (3) traz o verbete 'folhinha do anno' como sinônimo de calendário (latim Calendarium). O jornal "O Spectador Brasileiro" (4) em 1826 trazia o seguinte 'anúncio': "Pedro Plancher tem a honra de anunciar a sua Folhinha para o ano de 1827 (* Folhinha d'Algibeira para 1827, preço 280 rs.; Folhinha d'Porta, em que se acha inserido os Decretos de S. M. o Imperador, relativos ao Reino de Portugal, preço 100 rs.), fundada sobre um novo modelo inteiramente novo, e para que não poupou nem trabalhos nem desvelos para a tornar digna da aceitação do respeitável público a quem muito humildemente dedica".

"'Folhinha' é o vocábulo vulgar próprio da nossa língua que indica um calendário acomodado ao uso do povo (que talvez por isso lhe chama 'folhinha de reza'), com algumas adições próprias dos 'almanaques'. É justamente o que em França e noutras nações chamam 'almanach'; e as há de duas espécies, umas impressas em folha (donde veio provavelmente a palavra 'folhinha' por ser folha pequena de impressão), que se chama 'de porta' porque efetivamente os nossos antigos os pregavam nas portas interiores; e outras 'de algibeira' porque são em forma de livrinho que se pode colocar na algibeira. Estas, pelas diferentes adições que têm, se parecem muito com os 'Almanachs de Gotha"(5).

(1) "Folhinha de Modinhas para o Anno Bissexto de 1868: contendo o 3.º caderno de modinhas, cançonetas, lundúns, etc.; e seguida de noticis interessantes e a chronica do anno", Rio de Janeiro: Antonio Gonçalves Guimarães & Comp., 1867, 188 p., p. 18 - 19

(2) "Almanach de Lembranças Luso-Brazileiro para o Anno de 1866: com 431 artigos e 91 gravuras", Alexandre Magno de Castilho & Antonio Xavier Rodrigues Cordeiro, Lisboa: Sociedade Typographica Franco-Portugueza, 1865, 394 p., p. 371

(3) "Diccionario Portuguez, e Latino, no auql as dicções, e frazes da Lingua Portugueza, e as suas variantes significações, genuinas, e metaforias, se achão clara, e distinctamente vertidas na Latina, e authorizadas com exemplos dos Authores classicos", Lisboa: Miguel Manescal da Costa, 1755.

(4) "O Spectador Brasileiro - journal politico, literario, e commercial", Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1826 (quarta-feira), nº CXXVII, p. 3

(5) Almanaque de Gota, ou simplesmente o Gota ou Gotha, foi, entre 1763 e 1944, o guia de referência da alta nobreza e das famílias reais da Europa. Foi publicado pela primeira vez na corte de Frederico III, duque de Saxe-Gota-Altenburgo. Apesar de publicado na Alemanha, este almanaque foi continuadamente redigido em francês.

O objetivo do Almanaque era listar, de forma completa, as Casa reinantes da Europa, e os respectivos ramos juniores, bem como a maior parte das famílias nobres, o corpo diplomatico, e os mais altos funcionários dos diversos Estados. É necessário relembrar que as Casas reinantes da Alemanha e de Itália contavam-se às centenas, e os ramos juniores aos milhares, podendo, assim, avaliar-se o desafio que a publicação de uma obra como o Gotha representou.

O Gotha foi muito rapidamente tornado num grande sucesso vindo até a transformar-se numa necessidade social absolutamente vital para uma família nobre. Com efeito, nos séculos XVIII e XIX, era necessário uma fonte de informação incontestável para compensar as dificuldades de comunicação e, após 1918 e a queda de grande parte das famílias reinantes, o guia torna-se essencial para diferenciar os falsos títulos dos verdadeiros. Assim, uma família titular de elevada hierarquia não listada no Gotha era, presumivelmente, sinónimo de ter sido auto-promovida ou, eventualmente, de utilizar um título não válido.

Por outro lado, o Gotha jamais tentou incorporar nessas listas a pequena nobreza, deixando essa tarefa a cada país.

*** Sempre que possível, na transcrição de trechos da época, procurou-se atualizar a ortografia.

~ Joseph Shafan