Lá era o Éden

Não lembro se foi o primeiro, mas, certamente, um dos primeiros livros que tive o prazer de ler: tinha menos de dez anos e “As Aventuras de Tom Sawyer” arrebatou minha atenção e transportou-me a um mundo que, de certa forma, vivíamos na imaginação da São Bento de nossa infância. Invejava a esperteza de Tom e imaginava-me na jangada e na caverna com um amigo mais inseparável que Tonto o era do Zorro. Apesar da pouca capacidade de análise, o estilo de Mark Twain me cativou: ele foi criança e gostou muito de sê-lo; não havia moralismo nem condenação em suas palavras, mas uma imensa curtição até nas peraltices. E contava uma história como ninguém. Verdade que, àquela altura do campeonato, a maior parte das histórias que eu conhecia eram as do culto infantil, nem sempre bem contadas e, muitas vezes, assustadoras. Religião e medo gostam de se abraçar.

Samuel Langhorne Clemens foi um companheiro meio inconstante, mas a culpa foi minha, pois ele estava sempre disponível. Tão minha que só agora descobri que Mark Twain era uma expressão dos navegantes de rios americanos, significando “águas seguras”. A descoberta se deve a um livro simplesmente delicioso: “As melhores histórias curtas de Mark Twain”. Histórias bem escolhidas, algumas divertidas, outras amargas (o relato de uma escrava, explicando porque sempre sorria, mostra toda a crueldade da escravidão sem apelação sentimentalóide, mas com dureza emocionante), escritas com altas doses de ironia com que ele, há mais de 100 anos, tratava o puritanismo hipócrita, são uma aula de literatura feita com simplicidade e sabor.

Há, no livro, um extrato do “Diário de Adão” que, sem dizê-lo explicitamente, mostra como o machismo é atrapalhado e não faz sentido (escrito no Século 19, lembremos). Cutuca o fundamentalismo com vara curta, como quando Adão reclama do domingo, pois não trabalha a semana inteira e, no domingo, é proibido de fazê-lo. Faz a ressalva de que é bom guardar esse pensamento para si. Também há o “Diário de Eva”, todo eivado de sensibilidade, descoberta e dedicação.

O epitáfio na tumba de Eva é uma declaração de amor que, por si só, valeria o livro: “Onde quer que ela estivesse, lá era o Éden”.