Gato no telhado

Em tempos de muito trabalho, o sono é inimigo feroz. O pior: quando sono é acumulado e de muitos anos. Desde o final dos anos 70 eu dormia menos que o necessário . Era o curso universitário à noite ou mesmo a exaustiva tarefa do magistério, lá estava eu chegando em casa perto da meia noite e me levantando antes das 6. E não tinha arrego: tudo longe demais na minha São Paulo, tantas vezes impiedosa . Mas eu não reclamava. Era meu dever o trabalho e o estudo e eu sempre quis evoluir, ser dona da minha vida, me sustentar e fazer uma caminhada muito bela e enriquecedora em todos os aspectos.

E assim me formei, me casei e continuei trabalhando a uma distância absurda da minha casa. Eu chegava a cortar uma boa parte da cidade para chegar ao meu destino. Várias conduções ao dia... e eu firme na minha jornada.

Em Florianópolis, onde vivo desde 1986, algumas coisas mudaram para melhor. Passei um quarto de século sem saber o que era trânsito, condução apertada , pois fiquei trabalhando a 15 minutos a pé a partir da minha casa.

E, além do trabalho, resolvi estudar mais, me especializar nas terapias naturais. Quanta sabedoria ali se encerra. Os sábios chineses sabiam do poder da energia vital em circulação e, a qualquer sinal de desequilíbrio, não tem jeito: as doenças aparecem e o sofrimento vem junto inapelavelmente.

O curso de especialização em Acupuntura acontecia a 30 km de Florianópolis , numa localidade interessante, de colonização alemã: Santo Amaro da Imperatriz. O município tem esse nome em homenagem à família real , pois o Imperador Pedro II esteve ali com a Imperatriz Tereza Cristina para que a mesma, que não conseguia engravidar, se banhasse nas águas termais da região. Até hoje existe o hotel onde a realeza se hospedou e várias referências ao episódio do II Reinado.

Mas o fato é que eu chegava bem cedo à cidade, principalmente em tempos de estágio. Tomava o ônibus antes das 7 da manhã em Florianópolis , mas na noite anterior eu havia me recolhido perto da meia-noite depois de ministrar 5 aulas consecutivas, fora as aulas da mesma manhã. Durante a tarde existiam também os afazeres domésticos e textos escolares e mais atualização .. . Resumindo: eu estava um trapo.

Eu ia até Santo Amaro meio cochilando, babando, olhando com um olho só para não perder o ponto certo de descida. Pronto: eu saltava bem defronte à prefeitura para começar mais um dia de atendimento. Obviamente, o dia inteiro seria em pé, atendendo até 4 pacientes simultaneamente e eu tinha que estar apta para a função.

Numa das manhãs eu estava especialmente sonada. Desci do ônibus, fui andando meio torta, como carro batido e, de repente, alguma coisa me chamou a atenção e olhei para o telhado de um restaurante.

Safado! Sem vergonha! Um gato em posição de ataque a um pequeno pássaro que, distraidamente, bicava alguma sobra de alimento. Mentalmente xinguei muito, afinal gato, hoje em dia, não tem que caçar mais. Eles comem ração. Umas têm gosto de carne, outras de peixe . Tem até de frango. Os gatos de hoje têm um vidão! (claro que gato com dono). E quanto mais eu observava a cena, mais eu xingava o desgraçado. Xinguei até de corno ... mas gato não deve ser corno... não interessa, eu xingava com todas as minhas forças mentais .

Procurei uma pedra na calçada : agora eu te acerto, seu estrupício ! Parei bem defronte aos protagonistas, me posicionei muito bem para não perder o foco, respirei fundo, fechei levemente os olhos para ter mais precisão na pontaria... e pimba...

Perplexa, disfarçadamente, completamente sem graça, olhei para um lado, para outro e saí de fininho.. . nem o gato nem o passarinho se mexeram. Eram de cerâmica...

P.S. recentemente o meu cunhado veio de São Paulo nos visitar. Logo na chegada, me disse: “só que eu me esqueci da espingarda. Era prá matar aquele gato que ia comer o passarinho lá em Santo Amaro”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 16/04/2012
Reeditado em 16/04/2012
Código do texto: T3616544