MEMÓRIAS DE UMA JANELA DE TREM

MEMORIAS DE UMA JANELA DE TREM

Eram tempos difíceis, tínhamos um sistema de governo ditador, cujas atividades atemorizavam a população. Um sistema educacional deficiente, transportes, comunicações e, saúde. Contudo, eram cheios de esperanças. Não tínhamos metrô, carros com ar condicionado, telefone celular, microcomputadores, shopping centers, e todas as comodidades domésticas.

Bem cedo, pela manhã, íamos à estação e esperávamos o trem chegar; o maquinista fazia a manobra da locomotiva. Entravamos, sentávamos de preferência na mesma janela, do mesmo lado, que eram de madeira envernizada, assim como os bancos, as janelas internas, e por fora a janela de vidro que abríamos pelas laterais, como as janelas americanas. A viagem durava em torno de 40 minutos.

As estações que todas as manhãs acompanhávamos os ir e vir até chegarmos ao ponto final que era a Estação Central era: Floriano, Coqueiral, Tejipió, Areias, Afogados. A cada estação vinham sempre as mesmas pessoas; sabíamos quem ia para o trabalho e quem ia passear, e igualmente, as mesmas casas e paisagens, que da janela do trem pareciam ora alegres e coloridas, ora tristes e feias; outras vezes víamos apenas os quintais. A diferença estava na hora do dia, na posição do sol.

Cada estação tinha a sua peculiaridade. Floriano, por exemplo, tinha pontilhões onde cruzávamos riachos e víamos partes do rio, muita terra, muito verde, e casas lá no meio que, dependendo da hora do dia, trazia varias sensações; liberdade, sol, mas igualmente solidão e escuridão, muitas vezes iluminadas por um poste cuja luz aumentava o isolamento.

Costumava imaginar que lá dentro daquelas casas, elas estavam protegidas, acolhidas e seguras. O local que achava mais deprimente eram: um trecho em Coqueiral, e outro trecho era visão do Coque, uma favela no Bairro de Afogados, cuja pobreza extrema já me entristecia. Os locais mais aprazíveis eram as estações de Floriano e Areias. A cena engraçada era sempre ver o mesmo cachorro dormindo entre a grade e a janela de uma casa, que ficava próximo ao rio e as pedras. Nesse trecho parece que o tempo não passava, e dava a impressão de que ali, o trem diminua a velocidade.

Pouco a pouco, o trem ia chegando ao seu destino, a Estação Central. Penteávamos os cabelos revoltos pelo vento, ajeitávamos a roupa e nos levantávamos, indo em direção a porta, para não perdermos tempo esperando.

No final da tarde ao retornarmos para casa, vivíamos novamente os mesmos caminhos, só que dessa vez, vinha à escuridão. À noite, quando voltávamos, tínhamos que fechar as janelas, pois de vez em quando, alguém dentro do trem se machucava pelas pedradas que vinham de fora. Lentamente, e agora, víamos os contornos das casas, as luzes acesas, pois o dia ia dando seus últimos raios de sol.

Chegávamos à estação de casa, havíamos terminado mais um dia. Sinto saudade desse tempo. A vida era tão menos agitada pela violência; era tudo tão mais seguro, ou nosso mundo ainda não havia sido contaminado, invadido pelo mal. Pouco ou quase nada restou desse tempo. O trem foi substituído pelo metro, que nem de longe, tinha aquele ar aprazível de outrora. Éramos mais pobres, no entanto, éramos mais felizes! Tínhamos mais amigos, as pessoas estavam mais perto de nós. Tudo era mais, mais...

Recife, 10/2004