PÃO, PÃO, PÃO, TA SAINDO QUENTINHO ...

"_Pão, pão, pão tá saindo quentinho, pão, pão, pão bota pão pro Joãozinho." Cantava minha mãe em minha infância.

Dia desses em passagem por Juruaia/MG, a Capital da Lingerie, cidade pequena e serrana de um clima gostoso e uma gente gentil e acolhedora. Quando por lá fui a primeira vez percebi quão perigoso era chegar à cidade. Uma estradinha estreita, sem acostamento, sinuosa e tendo como agravante vários outdoors de lingerie estampando lindas e sensuais mulheres em trajes de agradabilíssima vista. Dirigir ali realmente exigia muita atenção e um olhar casto. Em meu último retorna a esta agradável cidade fui à padaria tomar um café e o ambiente exalava cheiro de pãozinho saído do forno. O que aumentou minha fome e me transportou à memória do pão em minha infância. E não era cheiro de pão francês, mas de pão doce, de rosca.

Aprendi com a Neurolinguística que nossa memória guarda tudo, registra detalhes e que basta um gatilho para acioná-la e as lembranças virem à tona. Aquele cheiro acionou um gatilho. O cheiro do pão doce me reportou a minha mais tenra infância. Minha primeira memória de pão. Foi em nossa casa de paredes de “queijo suíço” (cheia de buracos), quando ainda vivíamos, quase todos os irmãos, em casa paterna. Éramos como ainda somos, seis irmãos. (O mais velho saiu quando eu tinha 2 anos e o mais novo quando tinha 8 anos, oito anos depois, também saí.) Na cidadezinha natal, Santana do Jacarés/MG, havia como ainda há um clã de padeiros. Um dos filhos, com uma cesta de bambu, saía a noite de porta em porta vendendo pães, entre o pão de sal e o doce. E o legal da experiência com o pão de Juruaia/MG foi que tinha o mesmo cheiro do pão dessa época de minha infância, tal e qual.

O garoto do clã dos padeiros, em uma cesta de bambu, vendia seus pães a noite, pois na madrugada seguinte, os trabalhadores rurais já tinham que ter a merenda comprada para o café da manhã e da “matula” transportada em embornal de pano junto com o caldeirão e uma garrafinha de “Coca-Cola” cheia de café arrolhada com palha de milho. Café que ao ser tomado na lavoura era frio. Garrafa térmica ainda era luxo. Embora tenha lidado muito pouco na roça, ainda sinto no “alembrar” como era o gosto do café frio.

Lá em casa sempre tinha um irmão mais velho, ou até mesmo meu pai, que trabalhava de pedreiro na roça que comprava os pães doces do garoto da cesta de bambu. Eu pequeno, já apreciador da boa comida, sempre ganhava um para degustar ainda à noite, antes do sono chegar. Comia-o primeiramente com os olhos sentindo o cheiro e seu tamanho que para minha mãozinha de 3 anos era enorme. Degustava-o sentado no sofá vermelho com um copo de café com leite na outra mão enquanto olhava meu pai dedilhando seu velho violão amarelo. Não tínhamos televisão, a noites eram preenchidas com silêncio que uma hora ou outra era quebrado pelo violão, por um assunto curto ou pelo flar flar das páginas de algum romance que minha mãe lia. Depois da barriga estar cheia de pão eu dormia o sono dos justos na certeza de outro pãozinho pela manhã.

Depois de um tempo, tinha eu mesmo a incumbência de buscar pela manhã o pão em algum depósito. A venda mais próxima de nossa casa era a venda do finado Virico, onde a tarde eu mais meu amigo Amadeu pedíamos “sem-vergonhadamente” um pedaço de salsicha após travessuras pelas ruas nuas de onde morávamos. Outra venda por ali que era sortida do pão nosso de cada dia era o bar do Lionel.

Certa vez não encontrando pão na venda do Virico, afirmou-me Amadeu que encontraria rosca no bar do Lionel. Como no meu entendimento de 4 anos de idade rosca e pão estava tudo no mesmo balaio do significado significante, fui com a ideia de já chegar e achar o que buscava. À minha presença, um moço que atendia atrás do balcão me perguntou o que eu queria. Com os olhos arregalados e a boca cheia d’água respondi com poucas palavras que transmitissem minha ideia interna.

_Quero pão! Para o moço atendente pão não era o mesmo que rosca. Sua resposta foi direta. _Não tem pão! Eu sem muito o que argumentar cocei o olho e respondi mudo e miúdo: _Ah tá!

Na volta pra casa de mãos vazias encontrei Amadeu, que com cara boa me perguntou: _Achou no Lionel? O moço falou que não tinha pão. Respondi. _Mas não é pão que te falei. É rosca. _Ah, tá! Respondi coçando o olho. De volta ao bar do Lionel o mesmo moço com olhar de quem já me viu pergunta de novo com delicadeza de vendeiro objetivo:

_Que cocê qué?

_Pão!.

_Aqui não tem pão, já não lhe falei?!

_Aaaaah! É rosca! Respondi num susto.

_Ah tá..., rosca tem. Entre mal e bem entendidos saí satisfeito com a rosca embrulhada num papel pardo.

Tempos houveram que morando na casa de meu avô Zeca, à rua José Bernardino, pegávamos pão no depósito do Levi que ficava num cômodo da casa da namorada, a Letícia. Seus pães vinham da cidade vizinha. Vinham em enormes cestas de bambu cobertas com papel cinza. Vinham nos bagageiros do único ônibus que servia a cidade e nos ligava ao resto do mundo. Era pão de Campo Belo. Gostoso! Além do pão de sal tinha um tal pão tatu que comprávamos só de vez em quando. Mas que era pura gostosura. Uma delícia um pouco mais caro. Tinha também as chamadas bengalas que faziam fartura à hora do café da manhã ou do “meio dia” que era servido às 15 horas. Não me esqueço da Tia Wanda sempre dizendo: _Vai comprar pão pra nós tomarmos o café do meio dia! Só mais tarde fui entender que o segundo café do dia era servido às exatas 12 horas na vida que levavam na roça anos antes de meu nascimento. Almoçavam as 10 horas e ao meio dia justificava-se outro café.

No café do meio dia fazíamos duas garrafas de café, uma pra casa e outra que dentro de um embornal eu levava para meu pai na construção que estivesse trabalhando. Junto levava três pães: um pra ele, outro pro servente e um pra mim que gostava de tomar o café na construção em meio as massas e tijolos. Lá o café era mais gostoso, tomado na tampa da garrafa e assentado sobre uma pilha de tijolos. Mais tarde aprendi com Chico Buarque quão mágico são os tijolos num desenho mágico de construção. Entendi também que o que fazia mais gostoso o café era a presença do meu pai. A cena e o cheiro do cigarro de palha acendido após a “boca de pito” ainda são vivas em minha memória afetiva.

Os pães iam dentro do embornal embrulhados em “papel de pão”. Certa vez o papel que sobrou do café daquela tarde usei-o para embrulhar um meio tijolo cortado de comprido. O embrulho parecia de pão e deixei num canto qualquer. No dia seguinte papai me indagou se tinha sido eu o dono da arte do “pão de tijolo”. Um dos serventes anunciou aos quatro ventos que encontrara um pão e feliz da vida foi motivo de chacota dos companheiros após a decepção de encontrar o tijolo embrulhado.

Além do Levi, também busquei muito pão no depósito do Wadinho. Pão que também vinha de Campo Belo. Tinha lá umas roscas com nome de cantoras: Sula Miranda uma rosca enroladinha como se fosse as tranças da própria sertaneja, Vanusa uma rosca com duas bandas coberta de calda de açúcar. Chegava no balcão, esticava o corpo e nas pontas dos pés pedia com ar de riso: _Quero duas Vanusas e uma Sula Miranda. (Se na época eu já soubesse o que era bom, inverteria o pedido) Quem por ali passasse sem saber da história acreditaria ser uma loja de discos e não depósito de pães.

Os pães viam de Campo Belo por motivos que desconheço na realidade pois afinal, tínhamos na cidadezinha uma padaria. A padaria do Tuniquinho Padeiro que herdara o ofício de seu pai Antônio Padeiro. Até hoje os descendentes levam o Padeiro como epíteto. Mesmo vendendo botinas, fazendas e tantas outras coisas ainda são “Os Padeiros”. Embora o sobrenome fosse Leocádio, Padeiro foi um apelido que os diferenciou por toda a vida. Essa padaria passara por três gerações. O primeiro foi Antônio, o segundo Tuniquinho e o terceiro Reinaldo.

O pão do Tuniquinho era uma delícia. Tenho lembranças muito boa de seus pães de sal. Era diferente de tudo que já comi. Além do formato que parecia com os atuais croissants, o sabor era inigualável. Tinha também um pão sovado de tamanho pequeno com açúcar cristal por cima, uma delícia. Nunca comi nada igual.

A padaria do Tuniquinho foi um dos últimos estabelecimentos que representava a típica padaria portuguesa na região. Com seu ritual próprio, mais artesanal. Massa sovada à mão com pouco uso de maquinário. Estrutura tradicional de forno de tijolos com areia grossa e com a lenha acesa toda a tarde para assar os pães na madrugada. Massa preparada diariamente com fermentação natural, muito carinho e amor.

Desta padaria certa vez meu amigo Diogo pegava pela madrugada uma cesta de pães e saí antes das 7 horas, oferecendo de porta em porta, nas imediações de sua casa, o “pão do Tuniquinho”. Fui seu freguês. O pão era vendido ainda quentinho àquela hora e derretia a manteiga. Hoje encho a boca d’água no alembrar. Desse pão quem comeu uma vez nunca esqueceu.

Depois de uns tempos apareceu uma padaria nova. A dos irmãos Viana que tirou muita freguesia do Tuniquinho. Inclusive o Diogo que com olhar de comerciante ladino acreditou fazer mais sucesso com pães, agora franceses, da padaria nova que estava movimentada desde a inauguração. Em terra pequena, pequena novidade é grande.

Gleisson Melo
Enviado por Gleisson Melo em 14/05/2012
Reeditado em 27/05/2022
Código do texto: T3667925
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