Opus 23 – Parte 2. Dança da Filha do Rei da Montanha

OPUS 23 – PARTE 2. DANÇA DA FILHA DO REI DA MONTANHA

Ou

O DEUS QUE SONHA

(Renan Flores)

“That is not dead which can eternal lie

And with strange aeons even death may die”

(H. P. Lovecraft)

Premonição

(Latim praemonitio, -onis, advertência)

S.f.

1. Acontecimento ou experiência tomados como sinal de que algo vai acontecer. Presságio.

2. Forte sensação de que algo está prestes a acontecer. Pressentimento.

O mundo é uma merda. Uma grande bola de merda que algum ser divino deixou na Via Láctea num dos mais horríveis acessos de diarreia já confirmados. Um dos, porque o maior acesso de caganeira foi aquele que gerou a raça humana. Merda sobre merda, nada mais que isso. Um dia duas merdas resolveram ter um filho, e deram a ele o nome de Renan Flores. Esse pequeno monte de bosta cresceu e engordou, até se tornar uma grande e obesa bola de merda. A bola de merda achou que tinha sentimentos e resolveu chorar. Das lágrimas vieram a poesia, vindas de uma bola de merda. Lágrimas de merda. Poesia de merda.

Mas isso ainda não muda o fato de o mundo ser uma grande merda. À noite é uma grande merda fria e seca; o tão almejado cocô durinho. Mas de dia é um grande amontoado de fezes mole e grudenta, uma grande infecção genital mal cheirosa e pustulenta. Passei a fugir da luz do dia, como o Diabo fugindo da cruz. Comecei a abusar de medicamentos para dormir. Meu recorde é o de quatro dias seguidos. Além de me proteger do fedor diurno, os remédios me trouxeram a coisa mais preciosa e pura do mundo: sonhos. Desde que passei a usá-los com mais frequência, meus sonhos têm se tornado cada vez mais belos e intensos. E também misteriosos e assustadores. Sonhar tornou-se meu único consolo no castigo de viver.

Sonho paisagens silenciosas e noturnas, luzes magníficas bruxuleando sobre o concreto molhado de chuva. Outras vezes sonho com seres e entidades fantásticas, que conversam comigo e me prometem o desconhecido. Sonho é meu ouro, sono eterno é meu El Dorado. O desconhecido é meu Caronte. Sonho com as melodias mais incríveis já concebidas, a melodia do Universo. Deito no seio deste compositor onírico e ele me embriaga com suas criações, levando meu corpo ao orgasmo sônico. Mas, num ardil cruel, ele apaga estas lembranças antes que eu possa voltar à terra dos vivos.

Mas às vezes, sonho coisas antes que elas aconteçam. Não me digo sensitivo nem nada do tipo, tão pouco a premonição é meu dom. Talvez sejam apenas coincidências ou interpretações errôneas. Talvez eu esteja mentindo (e agora é a hora em que eu digo “haha, leitor palhaço!”) Mas então eu devo estar mentindo pra mim mesmo, e muito bem, já que estou acreditando na farsa. Coincidências ou não, são eventos que me marcam profundamente e ficam registrados a ferro em minha memória.

Ao longo da minha vida, posso contar nos dedos as vezes em que sonhei coisas que aconteceram. Coisas bobas, como sonhar um episódio do meu desenho animado favorito e ele passar no mesmo dia. Outra vez sonhei que tinha ganhado um certo brinquedo de aniversário e realmente o ganhei. Também sonhei com pessoas que há muito tempo eu não via, e no dia do sonho elas veem à minha casa.

Como eu disse, coisas bobas que até podem ser coincidências. A frequência desses eventos era bem escassa. Uma ou duas vezes por ano, não mais que isso.

Nos últimos meses, no entanto, tive cerca de três premonições, e todas aconteceram exatamente como nos sonhos. A primeira, sonhei que estava só e chorava muito. Os dias e noites passavam em questão de minutos, e eu continuava só e triste. Dois dias depois briguei com minha melhor amiga e passei um bom tempo sem falar com ela. Estes dias foram os mais solitários e tristes de minha vida, nada me trazia alegria ou conforto. Usei muitos remédios, cheguei a dormir dois, três, quatro dias em seguida.

Pouco tempo depois eu comecei a sonhar com uma entidade chamada “A Mãe”, e que realmente foi assustador. Certo dia eu sonhei com uma bola de cristal negra, e de dentro dela saíam vozes numa língua desconhecida. Dois dias depois um amigo me apresentou a história de John Dee, um astrólogo da corte elisabetana que usava uma bola de cristal negra para se comunicar com os mortos.

O último caso aconteceu há dois dias atrás. Eu sonhei com músicas, várias músicas. Não sei definir que gênero era, quais instrumentos eram usados. Não soava como nada que eu conheço. E então vi porções de nuvem, de fumaça, não sei dizer ao certo. E de dentro delas saía luz. Havia muitas vozes em várias línguas diferentes. Uma dessas nuvens veio até mim e disse que precisava de minha ajuda. Começou então a soar uma música e ele pediu que eu a anotasse e levasse-a comigo. Hoje, lendo um livro, conheci a incrível história de Rosemary Brown. Rosemary foi uma inglesa muito pobre que dizia conversar com os mortos. Esses mortos eram ninguém menos do que grandes compositores, como Beethoven e Mozart. Eles pediam ajuda a Rosemary para que ela transcrevesse composições que eles haviam feito depois de morrer. Rosemary não tinha nenhum conhecimento musical, nem mesmo dinheiro para aprender. Mas surpreendentemente as partituras que ela supostamente transcrever eram extremamente elaboradas. Segundo ela, o próprio Haydn ensinou-a a tocar piano, envolvendo suas mãos como luvas.

No momento em que li isso, meu coração acelerou e logo eu associei com meu sonho. Nunca tive um número tão grande de premonições, ainda mais num espaço de tempo tão curto. Tenho certeza de que nada disso é coincidência.

Há um tempo atrás, logo após conhecer a história de John Dee, passei a pesquisar a fundo ocultismo e magia enoquiana. Alfabeto enoquiano é a língua dos mortos. No entanto, segundo relatos é perigoso entrar em contato com esse mundo (assim como é perigoso sair na rua deixando a casa toda aberta). Não contendo minha ansiedade tentei alguns rituais em casa, mas não obtive resultados. Alguns dias mais tarde eu tive a impressão de ver um homem no telhado de casa, à noite. Ele me observava profundamente e me deu calafrios. A visão foi suficiente forte pra me fazer não tentar outro ritual enquanto não souber exatamente como fazer e como me proteger.

Essa segunda premonição me deu uma luz sobre o que talvez isso tudo queira dizer. Eu sou músico, toco alguns instrumentos e às vezes componho. Mas acima de tudo sou um ouvinte. Interesso-me por todas as manifestações musicais do mundo, das sinfonias de Beethoven aos cânticos dos aborígenes de Taiwan. Talvez exista algum compositor ou músico que já morreu e que esteja tentando entrar em contato comigo. Talvez alguém do outro lado queira mostrar aos vivos algo que não conseguiu finalizar em vida, e quer fazer isso através de mim. Se isso for verdade, é uma oportunidade única de aprender sobre coisas desconhecidas ou além de minha compreensão. Isso seria fantástico, magnífico!

No entanto, não estou inclinado a tentar outro contato enquanto não aprender como me proteger. Até lá, aguardo ansiosamente pelo que o próximo sono pode me trazer. Seja outra premonição ou um sonho fantástico, estas têm sido as noites mais incríveis em muito tempo. A morte talvez seja o único meio de eu me aproximar da vida novamente. Seja lá o que ou quem me aguarda do outro lado, estou ansioso para aprender e ajudar.

Renan Flores,

Dezesseis de maio de dois mil e doze.

Renan Gonçalves Flores
Enviado por Renan Gonçalves Flores em 17/05/2012
Código do texto: T3671996
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