In the morning

Acordo as cinco da manhã e fico elocubrando idiotices enquanto lavo os pratos. Vejo meu digníssimo passar com a corrente que usou para trancar a janela do quarto de minha filha, que foi invadido um dia desses, e a indignação impotente sobe aos grugumilhos!

- Caralho, - penso eu indignada até a morte - estamos prisioneiros de nossas casas! Os ladrões estão soltos na rua e nós trancados, aos ladrões tudo é mais fácil e a gente, que faz um esforço medonho pra ter alguma coisa mais cara, tem que ceder, pra não morrer, pra não levar uma facada, um tiro. E agora tem os “nóia”, os “noieiros”...roubam qualquer coisa pra comprar crack e são extremamente perigosos quando estão na “fissura”. Estão disseminados como mosquitos da dengue e tão difices de combater quanto.

Segue o raciocínio, aos pinotes no meu juízo pensador, filosofante, cheio das lições marxistas, filosóficas, espiritualistas, espíritas e tantas outras coisas de que me compus para viver:

- Essa porra de governo que faz bosta nenhuma! Também, depois que botaram pobre na condição de “coitado” e esses coitados tiveram acesso à informação deturpada e massificante da televisão, podia era dar nisso mesmo! Cacete, eu sou do tempo em que a gente andava na rua e não tinha medo. Ladrão ou bem era de banco, que não ia perder tempo com assalariado ou de galinha, por que tinha fome. Mas, agora, é a vingança do povão: tantos anos de exploração agora se voltam contra quem explorou. Os que tem alguma coisa presos, enquanto soltos os que nada tinham.

Daí o meu juízo pula de novo, com base na indignação – repito – impotente, que sinto:

- Mas, e a gente? A gente que não tem nem nada muito nem tanto, que trabalha feito condenado e não tem como botar em casa sistema de alarme, fazer seguro do carro veio – que é mais caro do que o próprio carro – que compra um celular pra pagar em trocentas e cinqüenta vezes no cartão? E a gente? E a gente que vai pro trabalho de ônibus, trem e bicicleta? Por que caralho a gente tem que ser roubado por um filho da puta que não faz nada melhor na vida que comprar nóia pra fumar? Cadê o governo que não faz porra nenhuma a não ser cobrar imposto e mais imposto? Me pergunte o que eu fazia com os nóia e eu digo: juntava tudo e dava nóia de graça até morrer tudinho...fazer o que? Eles tão a fim de morrer e eu a fim de me livrar!

Daí meu juízo se alarma com esse negócio hitlerista de “solução final”...não, não é assim. A triste realidade é que estamos abandonados por um governo corrupto, safado, e que resiste a todas as tentativas de conserto. Um sistema tão massificante de roubo e esquema que engole e suga para seu vórtice todos os que se aproximam: é fácil demais! É muito dinheiro e a moral humana é uma coisa ridiculamente fraca. Eu não sei se estando lá eu faria diferente...acho que rodava de primeira, por que eu não tenho “a manha” e tenho um pudor miserável de saber que “roubei”....fico com vergonha, só de pensar: primeiro em ser descoberta e segundo com que cara eu vou aparecer “do outro lado” onde tudo se revela. Talvez quem roube não creia que exista um “outro lado” onde as coisas todas são reveladas, onde é impossível esconder suas ações, gravadas em suas lamas como tatuagens bem elaboradas, tribais feitos com fuligem e espinha de peixe, milenares.

São seis horas da manhã e todo mundo já foi trabalhar. Eu acabei meu serviço na cozinha e vim terminar meus serviços aqui no PC, com todos os meus pensamentos inconclusos...o Rex se aproxima sobre meu ombro e diz, balançando a cabeçorra:

- Você não tem jeito!

- Não tenho, Rex, não tenho!