A SALAMCANCA DE PELOTAS, A CIDADE DO THOLL

Contam as lendas de Santo Tomé e as bocas castelhanas que aquela era uma tarde quente. Tão quente que as pedras estalavam e que em dias assim a gente só pensa em ficar deitado com a bunda no ventilador. No mormaço, alguns até reclamaram falta de ar, os coroas tontearam e as mais belas buscaram os maiôs escondidos, mas não tiveram coragem de entregar-se ao sol. Dava até pra fritar ovo em careca. O fato é que só o sacristão, que tava de bobeira, mais perdido que bala soft em boca de banguela, se arriscou ao refresco das águas do Uruguai e saiu, chupando uma laranja e arrastando os havaianas.

Descendo pela barranca, o dito meteu as canelas n’água, estranhando o borbulhar que brotava do leito como sopa de velha. De repente, mas no repente mesmo, levou um baita cagaço que até um prego 17 x 27 ele cortaria. É que aflorou do rio a teiniaguá, uma lagartixa com cabeça de pedra que viera nas navegações espanholas como fada e fora amaldiçoada por Anhangá-pitã, o diabo dos mouros, que ficara tri contente pelo clima de maldade que aqueles trouxeram aos índios nus. O sacristão, que primeiro tremeu os joelhos e logo depois cresceu o olho pra cima do lagarto, já ouvira falar da teiniaguá pelos botecos afora e sabia que o bicho virava mulher na noite e que escolheria de amor alguém com coração puro. Rapidinho, o sacristão, “campeão de guerra de bosta e nado de costa” desde piá, catou a tetê (apelido carinhoso pra teiniaguá) e a meteu na guampa (um cantil, pros mais desavisados), correndo pro seu quartinho nos fundos da igreja. Lá ele ficou a descascar as horas, com um olho no peixe e outro no gato, esperando que a lagartixa virasse fêmea e ver no que daria (mais especificamente no que ela daria). Quando foi pelas 18h37min, 18h33min no relógio da igreja, porque a igreja tá sempre atrasada, pum... a lagartixa virou uma linda prenda, daquelas que a gente só vê no programa do Gugu, e, sorrindo, conquistou de prima o coração do garoto.

Uns dias depois, os padres e os mais chegados começaram a comentar como o sacristão andava estranho. Parecia cansado... Como tá chupado!!!, observou um gaúcho... Acordava tarde, comia pouco (comida, amigo, comida...) e quase nem abria a janela. Mas na verdade ele tava mais ligado que radinho de guarda e aquele quarto silencioso, na noite, virava uma gemedeira que nem sinfonia de gato: é que o sacristão descobrira o que era bom e passava, com a prenda, as noites em claro estudando anatomia humana prática.

Uma manhã, o sacristão acordou, todo suado (já fazia dias que nem lembrava de tomar banho e tava com a pele mais gordurosa que telefone de açougueiro), numa catinga, e se apavorou ao ver aquela quantia de padre dentro do quartinho, a rodeá-lo. Missa do galo?, pensou. Não: teiniaguá. Barbaridade... que heresia... que ofensa a Deus e toda a moral jesuítica, cristã e afins... Tudo bem roubar, surrar ou matar, mas teiniaguá não!!!, disse um bispo. Levaram o rapazote pra praça, onde os mui amigos gritavam: garrote vil!!! Garrote vil!!! Garrote vil!!! A teiniaguá, que no meio da fumaceira chispou de volta pro rio Uruguai, vendo que seu amado iria pras cucuias, apareceu e salvou o gajo, fugindo com ele pras bandas do Cerro do Jarau, onde encontraram uma caverninha, doce caverninha. Naquela salamanca, que era no mínimo o máximo, puseram-se a habitar e esconder muitos tesouros, prometidos aos corajosos espeleologistas que se arriscassem a desvendar seus mistérios e desafios.

Como no conto A salamanca do Jarau, do saudoso pelotense João Simões Lopes Neto, Pelotas também guarda seus tesouros àqueles que por ela se atreverem. Assim foi com a revista Aplauso, que neste ano de 2006 certificou a nossa Princesa com a Capital da Cultura no interior do estado, deixando pra trás outras cidades como Caxias do Sul, Santa Maria, Rio Grande e Novo Hamburgo. A Cidade do Tholl, como foi chamada, em referência ao brilhante trabalho do diretor João Bachini e da molecada linda e talentosa da antiga OPTC, está numa fase excelente de produção literária, musical e cinematográfica. Quase todas independentes, isto é bem verdade, mesmo que a Bia Araújo e sua equipe da Secult têm trabalhado muito, fazendo das tripas coração, como diria minha vó Sofia, com editais de apoio à publicação de livros, com o 7 ao Entardecer e apoios a outros diversos eventos, mesmo sem cash. No entanto, a maioria dos patrocínios que rolam em nossa cidade ficam restritos a artistas e espetáculos lobistas, geralmente atrelados à grande mídia de rádio e televisão, não deixando a água da cascata chegar à gente nova que, dando murro em pedra, tenta se fazer ouvir e mostrar seu brilho. A cultura da massa atropela, ignora, desfaz... como dói ouvir amigos comentando as novidades das novelas, procurando nas vitrines produtos novos para velhas festas comerciais e materialistas, buscando em notícias policiais a renovação do mundo... Sintonizemos nossas antenas no rock da Freak Brotherz, no Marco Gottinari, na RádioCom, nas exposições de artes e saraus poéticos que estão rolando, no trabalho dos Piratas de rua, no Odara, do Gaic – Pestano, nos corais como o da Católica, do meu querido amigo Léo Oxley, e o da Música pela música, e em tantos outros que faço, aqui, a injustiça de esquecê-los e veremos que a taça é nossa com merecimento. Enquanto Caxias se remói, Porto Alegre treme...

E Pelotas, vibrando em letras, sons e artes, que muitos munícipes ignoram ou desmerecem, fica bem quietinha em sua caverna encantada, parecendo esperar que exploradores de fora dêem valor a seus tesouros que cintilam pras paredes...

Duda Keiber
Enviado por Duda Keiber em 05/02/2007
Código do texto: T370139