Carência ou Estado de Carência?

Carência ou Estado de Carência

Jorge Linhaça

Acostumamo-nos a ouvir que: “Esta ou aquela associação ou pessoa, faz um trabalho excepcional com comunidades ou pessoas carentes”.

Parei para refletir rapidamente sobre o assunto e parece-me que existe um problema não com o trabalho em si, mas com a forma como se fala sobre ele.

Quando trabalhei na Secretaria da Criança e do Adolescente, em São Paulo, atendíamos “meninos de rua” e “meninos em situação de rua”.

A distinção é que os primeiros não tinham um lugar para onde voltar e os segundos estavam na rua por opção, às vezes apenas provisoriamente.

O mesmo deve se aplicar às comunidades, considera-las ou designa-las como carentes estigmatiza os seus integrantes e rebaixa a sua autoestima de forma a torna-los eternamente marginalizados.

A única maneira do ser humano evoluir da dita “carência” para outro patamar é acreditar que sua condição é apenas transitória e que ele tem a capacidade e os meios de modificar o estado provisório em que se encontra.

Vejo muitos políticos e pessoas dizerem que querem tirar o povo de dentro das favelas, no entanto, é preciso mais do que isso, é preciso tirar a favela de dentro do povo.

Não adianta praticar políticas assistencialistas apenas provendo as necessidades imediatas das comunidades, isso é importante sim, mas é mais importante dar às comunidades a capacidade de gerirem suas necessidades de médio e longo prazo.

Preparar as comunidades para darem condições de cidadania e dignidade aos seus moradores é, portanto, o desafio que se nos apresenta no dia a dia.

Todo esse trabalha pelo resgate da autoestima da população mas não se resume a isso, é preciso ir além, é preciso fazer com que as pessoas fazem parte de um todo que, se parece uma massa heterógena, é ao mesmo tempo nessas diferenças que precisa descobrir a sua força transformadora.

As comunidades são um microcosmo de nossa sociedade como um todo. Em nosso país temos varias religiões, várias etnias e várias culturas, um amplo espectro de miscigenação e, consequentemente, um caldeirão sócio-cultural de onde podem brotar diversas facetas atividades capazes de modificar o modo de percebermos o mundo.

Não se trata de escolher um único caminho, mas de preparar o entorno para aceitar as diversidades que afluirão dos interesses de seus diversos habitantes.

Existe um erro crucial em se acreditar que, numa determinada comunidade, só exista pessoas interessadas em um tipo de atividade ou num tipo específico de manifestação cultural. A efervescência cultural deve ser administrada de modo a não monopolizar determinada ação em detrimento das demais.

O estigma de que os afrodescendentes só sabem dançar, cantar ou jogar futebol é algo a ser evitado, assim como o de que branco não faz essas coisas de maneira tão boa quantos aqueles.

Negros podem gostar de música clássica, por exemplo, assim como brancos podem preferir a cultura hip-hop.

O fato de uma comunidade ser formada principalmente por negros não significa que deva ser tratada como um gueto africano.

É preciso resistir à tentação de criar um espaço cultural ou planos de ação baseado unicamente na predominância étnica de uma comunidade.

É preciso entender que a capacidade de sonhar e os sonhos que temos não estão ligados à cor de nossas peles ou nossa ascendência étnica.

Estereótipos apenas atrapalham o progresso individual do ser humano.

Nossas comunidades não são necessariamente compostas de pessoas carentes mas sim de pessoas que estão em um estado de carência devido a vários e diversificados fatores que devem ser detectados

pelas lideranças locais. O que funciona em uma comunidade pode não obter sucesso em outra. O que faz a diferença aqui, pode dar com os burros n’água acola.

Comunidades são organismos vivos e em constante mudança e assim devem ser tratadas, sem fórmulas prontas, sem varinhas de condão.

Salvador, 02 de junho de 2012.