A BANDA, O GAROTO E O LIMÃO

“Para mim a banda de música é um negócio comovente. O pessoal lá sentado com toda aquela seriedade é o retrato da própria condição humana. Eles põem um uniforme e tocam. Aí, de repente, tornam-se o supra-sumo da transcendência, a coisa mais cultural da cidade.” Escreveu Adélia Prado em “Os Componentes da Banda”. Desde garoto adoro ouvir a Banda de Música. Em minha pequena cidade onde nasci e cresci sempre teve Banda. E como não podia faltar ela sempre estava abrilhantando todas as atividades culturais da cidade. Era procissão, festa, desfile, Setenário das Dores, retreta no coreto e até enterro em alguns casos.

Em procissões eu andava de mãos dadas com meu pai ou minha mãe sempre prestando atenção no toque da Banda. Costumava caminhar segundo o compasso da música. Nas ruas de paralelepípedo eu pisava em cada quadradinho de pedra como se marcasse o compasso da música. Gostava de andar na procissão perto do andor, pois era ali que a banda ficava. Um pouco atrás do cortejo. Ainda hoje me lembro do João Marinho com seus óculos grandes na ponta do nariz quase caindo, batendo no tambor com um a mão e com outra segurava o instrumento de modo a ficar na altura certa. A Tuba me impressionava por tomar todo o corpo do músico como uma Anaconda apertando sua presa. Enquanto observava a bochecha que o músico fazia imaginava que se gastava muito ar para fazê-la emitir o som. Encantava-me com a luz refletida nos instrumentos prateados ou dourados, trompete, bombardino, trombone, Saxofone, Tuba e os tambores e clarins. Queria um pra mim. A primeira vez que pus a mão em um instrumento até tremi de emoção na primeira aula prática de música quando me meti a aprender teoria e prática musical na sede da banda local. Era um Sax Horn, velho e usado. Não tinha mais o brilho que me encantava, mas era um instrumento. Esse Sax Horn já estava aposentado depois de longo tempo de uso. Na Banda tinha um novo, bonito, prateado e brilhoso. Era do Antônio Barbeiro. Toquei-o escondido. A emoção foi maior. A banda precisava de mais um músico para este instrumento, afinal o Antônio Barbeiro, único músico que tocava este Sax, iria se aposentar um dia. Aí o professor musical, Zé Bica, me incentivou a aprender o tal Sax Horn que era muito importante na Banda, pois fazia a marcação do compasso. Não concluí o curso. No ano seguinte mudei-me para outra cidade.

Na pequena cidade a banda tocava no Ano Novo e no Leilão e Festa de São Sebastião ambos no chuvoso mês de Janeiro. Entrava Fevereiro e nos três dias da cavalhada, mais a contradança da terça, a banda estava lá abrilhantando com os inesquecíveis dobrados dois corações, cisne branco e tantos outros que não sei o nome, mas basta ouvir para saber que são do carnaval em minha terra. Na semana que antecedia a Semana Santa celebrava-se a Semana das Dores. Sete dias de celebração relembrando as Dores de Maria e a banda do coro da Igreja do Rosário fazia-me entrar em êxtase pela beleza das músicas e a magia que ela me proporcionava. Na semana Santa tocava músicas para momentos de recolhimento, respeito e meditação bem como momentos de exaltação e alegria como na páscoa e na última procissão do triunfo de Nossa Senhora. Mês de Julho sempre tinha encontro de Bandas. De várias cidades vinham Bandas a se apresentarem pelas ruas e praças da cidade com um belo fechamento ao cair da aurora formando uma enorme banda a executar o Hino Nacional. Coisa linda de se ver e ouvir. Neste mês também tocava como ainda deve tocar na festa da Padroeira Sant’Ana. Em Setembro é tempo de festa de São Vicente onde a Banda São Geraldo faz presença. Outubro mês de N. Sra Aparecida e aniversário da cidade a banda abrilhanta, sonoriza e encanta em procissão, desfile e retreta. Dias desses fui à Cássia e lá conheci a escola de música Heitor Combat e ao ver a meninada tocar “Dois Corações” arrepiei e enchi os olhos. A Banda esta impregnada em minha subjetividade. Faz parte de minha história e minhas emoções.

Quando li “O Menino Maluquinho” do Ziraldo, impregnei-me das idéias de que uma infância bem vivida produz adultos felizes, realizados e mais decididos. Que pessoa, quando garoto não aprontou das suas e depois adulto riu no “alembrar”? Roubar goiaba e jabuticaba. Tocar campainha e sair correndo. Quebrar telhado ou vidraça com a bola da pelada. Beber o vinho do padre em tempos de coroinha. Fui um bom menino, mas aprontei das minhas também.

Os cheiros e sabores são lembranças fortes em nossa memória. Quantos cheiros nos remetem a acontecimentos passados. Outro dia senti um cheiro de pão doce numa cidade que passava a trabalho e o tal cheiro me remeteu a infância, a mais remota lembrança de pão. Sabores não ficam pra trás, quanta comida comemos por aí e algumas nos remetem a de nossa mãe ou avó. O cérebro registra tudo e na hora que aciona vem varias lembranças a mente. Há lembranças que nos fazem salivar e muito. Um bom exemplo é lembrar de limão. A boca encharca. Sente-se o azedo e as glândulas salivares trabalham a todo vapor.

Quando moleque de pé no chão num domingo de retreta na praça, saí de casa com limões já maduros colhidos na horta da Tia Marta no bolso. Um canivetinho na mãe e sal no outro bolso. Descascava-os e com sal lambia-os a contento. Como gosto de banda e esse gosto é desde a infância, neste dia segui o caminho da praça movido que fui pelos dobrados que de longe se ouvia na cidadezinha. Mal me aproximara do largo do Rosário e já vi os raios do sol refletidos na tuba, trompete, trombones e bombardino. Meus olhos se encheram de emoção e minha boca de saliva pelo limão. De calças curtas e camisa meio desabotoada fui aproximando da corporação. Executado “Dois Corações” minha alma transbordou de alegria. Lambi meu beiço ainda salgado, enxuguei uma gota de lagrimas da emoção e peguei outro limão capeta da horta de Tia Marta. Enquanto buscava o último limão no fundo do bolso a banda iniciava outro dobrado a plenos pulmões e eu quase de frente olhando e descascando o limão. Quando cortei-lhe uma tampa minha boca se encheu de água, na primeira lambida a banda desafinou. Na segunda lambida a banda parou e na terceira alguém gritou:

_Longe daqui com o capeta desse menino chupador de limão!!!

Gleisson Melo
Enviado por Gleisson Melo em 03/06/2012
Reeditado em 26/06/2021
Código do texto: T3704031
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