Patati patatá

Patati patatá







Essa mulher, que parecia estar dormindo próxima ao elevador, só entrou porque eu abri a porta. Lá dentro, do nada, ela exclama que se fosse legislar multaria os esqueitistas, que não passam de um bando vândalos depredando a avenida. Emitiu essa opinião e desceu no sexto andar, sem se despedir. Eu só estava no elevador por causa da sacola. Havia esquecido.

A rede de supermercados #!!+≠!!**@@!! não dá um segundo de sossego para os clientes, alguém no andar de cima vocifera em alto falantes que só ali se encontra o produto xis, com tal preço e tais condições de pagamento. E eu com isso? Estou no estabelecimento para comprar bolachas de água e sal, símbolo muito bem intencionado de uma nova dieta magra em carboidratos.

Num dos corredores dois rapazes conversam, com certo abatimento, sobre seus pensamentos e suas vidas. Um deles diz que a barra está pesada, daí, para se distrair, vai para o bilhar e, pelo que se depreende da conversa, todos os freqüentadores do bilhar pertencem ao crime, podendo mesmo ser descritos, poeticamente, como bandidos de toda sorte. Segundo ele, ladrões de carro, ladrões de carga, ladrões de banco, motoqueiros assaltantes, ladrões de residência, por aí a fora, e que insistem, toda vez que ele vai no bilhar, em convidá-lo para uma dessas organizações. O outro também se queixa, conta que está tentando cultivar hábitos saudáveis, mas só na sua rua são trinta botecos e duas biqueiras.

Na fila do caixa os jornais de hoje tratam de bandidagem explícita na área da política. Podem-se ler nomes e acusações. Que será isso, uma epidemia?

Sempre, em qualquer lugar, torna-se possível indagar consigo mesmo – quando é que alguém vai perceber o que está acontecendo?

Meu aniversário foi mês passado.

Vi na TV, há poucos dias, certa doutora da USP explicando uma pesquisa sobre racismo. Primeira pergunta – você é racista? Noventa e quatro por cento dos entrevistados respondeu “não”. Segunda pergunta – você conhece alguém que seja racista? Resposta de noventa e sete por cento dos entrevistados – “sim, conheço”.
Historiadores do futuro irão gargalhar diante disso.

Palavra que eu esperava três telefonemas neste aniversário. Em contrapartida recebi mensagens muito legais de parabéns, algumas inesperadas e, confesso, gosto muito desta data. E da coisa toda, presentes, bolo, assoprar velinhas, “e pra ele nada, tudo!”, etc.

Voltei do supermercado e “caía a noite sobre o viaduto”, guardei meu pacote de bolachas e cometi a burrice de ver as notícias. Esquartejaram uma menina de quinze anos porque queriam roubar o seu filho. Desliguei o aparelho. Não, fala sério, não há mais estômago para a loucura alheia. O Datena alega que esse tipo de coisa acontece porque a lei é branda. Discordo. Uma aberração dessas ocorre devido a uma piração generalizada e desenfreada. Ninguém tá pensando em lei no instante de esquartejar outrem.

Circula pela internet um e-mail, repleto de fatos e fotos que, vou te contar, dá até arrepios. Adivinha sobre o que é? Vou te dar uma dica, está rolando no face um posterzinho com os dizeres – “quem compra droga dá dinheiro para o crime organizado, quem paga imposto idem”. Minha nossa, só mesmo fazendo piada.

TV desligada, bolachas guardadas, vou para rua transitar em meio ao burburinho e no espaço de um quarteirão ouço uma senhora dizer para a outra:

- Não te disse? Para você ver como são as coisas, quem leva o filho na igreja não visita ele na cadeia...

Fiquei um bom tempo parado esperando a condução. E esse último tema do EC bailando na minha mente como uma borboleta sem asas, parecida com uma lagarta, ou como uma lagarta com asas, parecida com uma borboleta. “Tem certas coisas que não sei dizer”. Verdade seja dita, ultimamente não tenho conseguido dizer nada, sobre nada, vezes nada, a respeito de qualquer coisa ou para qualquer pessoa. É como se o meu aparelho de ler o mundo, e digo assim, pois não estou me referindo a livros e revistas e sim ao todo, estivesse temporariamente desorientado. O aparelho lê, lê, lê e não chega a conclusão alguma. Some-se a isso a antena interna, aquela que capta o que deveria vir do interior, que no momento nada capta exceto fragmentos, boa parte deles desprovido sequer de um mínimo de contorno. Assim sendo, sobra o que? Ou, reformulando, de que modo seria possível, nessas condições, alguém dizer alguma coisa? E o pior é que há uma vontade enorme de exprimir, tenho todas as letras do alfabeto ao meu dispor e não consigo formular nem uma sentença, por menor e mais minimalista que seja, para servir de vestimenta à sinceridade ignorante deste presente, que supõe tudo ver, porém nada compreende.

Em vista disso, e talvez pela falta de explicar algo, (como se isto fosse necessário...), sobre a situação toda, me vem a metáfora de um acidente com o “transportador” da situação toda. Viemos de um lugar, eu, você, os vizinhos, os compadres, os notórios e os desconhecidos e de repente desembocamos noutro local – neste. Daí o jeitão da situação remete a um acidente, só que não há caixa preta e ainda faz-se impossível contabilizar o montante de vítimas. Oh, isso causa uma sensação, convenhamos. Segundo ouvi, similar a de um pai que leva os filhos na Disneylândia e de súbito se depara o Mickey Mouse jogando gasolina nas próprias vestes e depois riscando o fósforo.

Eu sei, não soa animador, mas na minha opinião é apenas uma fase.

Encerramos com duas proposições dignas de conjeturas. Primeiro, os transcendentalistas, que diziam assim: esquecemos todas as nossas restrições e nos tornamos conscientes pela intuição e experiência.

Por fim: patati patatá.



(Imagem: John Currin)




 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 05/06/2012
Reeditado em 28/06/2021
Código do texto: T3706814
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