Clandestino

Segunda-feira, dia mundial dos cozidos em todo o globo, eu acordo a tempo de vê-la caminhando pelo quarto só de calcinha e camiseta (ah, o Paraíso!), revirando os armários apressada a procura de roupas para sua caminhada matinal, eu não sei de onde ela tira tanto pique, e enquanto eu limpo o para-brisa da minha vista ela diz que eu tenho que ir, ela tem um tom um pouco seco, está chateada comigo por alguma idiotice da noite anterior, então eu pego minhas roupas e me visto mecanicamente, a minha cabeça pesa.

O pai dela está na cozinha lendo um jornal ou comendo uma torrada ou qualquer coisa do tipo, e ele não pode nem sonhar que existe um clandestino como eu dormindo pelado na casa dele – eu ainda tenho amor por essa vida – então ela sai na frente, mas no corredor ela se vira e diz um “te amo” ainda ressentido e eu só sorrio e digo “também te amo” e ela vai e para na porta da cozinha e puxa assunto com o velho dela, é minha deixa, eu deslizo, alcanço o quintal como um gato vagabundo, pulo o portão num movimento rápido e caio na rua como se nada tivesse acontecido.

Estou seco e trêmulo por um copo d'água. Maldito conhaque, mas agora é tarde, o Sol da manhã simplesmente queima minhas retinas, eu paro em uma padaria e tomo três copos d'agua e um café. Saio e acendo um cigarro com gosto de chorume, dou dois tragos e jogo fora. Ahh.

Continuo minha caminhada, só quero chegar em casa e morrer. Sigo pensando nela, naquela pele lisa, nos olhos e seu sorriso, naquelas curvas que Deus planejou pra me ver derrapar e perder o controle, garoto esperto, conseguiu. Odeio chateá-la, nunca é por mal, mas acaba acontecendo, porque no fundo eu sou só mais uma alma perdida nessa existência, e logo agora que eu encontrei alguém (re-encontrei?), o medo de que tudo isso vire nada antes que tudo aconteça me amortece.

Eu não sou idiota, eu sei que eu sou tudo que ela quer, mas não tenho o que ela precisa, ela acha que eu não posso mudar esse meu jeito, a minha forma de ver as coisas, de viver a vida de uma maneira despreocupada que soa como a mais pura irresponsabilidade aos olhos das pessoas e eu entendo, talvez eu não possa mudar isso – tão rápido – e isso meio que deixa as coisas numa corda bamba. O fato de eu não ter um puto no bolso nem pra uma porra de um sorvete às vezes, me rebaixa a categoria dos párias da sociedade, não importa se eu sou um ser humano de bom coração ou que eu escreva livros, ou limpe a casa pra minha mãe ou os meus planos de rodar o mundo, todos estão completamente céticos e isso é tão triste e desolado.

Eu chego em casa, tomo café e desmaio. Acordo atrasado, tomo um banho de gato, calço meus sapatos e saio correndo pra pegar o Ônibus Azul rumo à escola preparatória de homens alados, lá aprendemos a tecer asas e alçar voo, à caçar e construir abrigos, muito interessante, não era bem o que eu planejava, mas pode ser uma maneira de retribuir à minha mãe todo o cuidado que ela teve, até porque ela já está ficando cansada e meu tempo é curto e eu preciso dar um jeito de ajudá-la, então todos os dias eu pego o Ônibus, apertado entre as pessoas que tem de sair daqui se quiserem alguma sobrevida, já fiz até alguns amigos descartáveis, mas geralmente eu fico quieto a viagem toda, rabiscando ou lendo alguma coisa. Pensando que tudo isso não pode ser em vão, que o Tempo não pode me engolir antes que eu faça algo notável, que eu não posso parar enquanto eu não chegar lá onde eu quero, mesmo sabendo que quando eu chegar lá eu já vou querer chegar mais além e assim sucessivamente até que eu me torne obsoleto aqui nesse Mundo.

Tudo corre normalmente, até que é hora de voltar, mas começa a chover torrencialmente na Megapólis e eu não tenho guarda-chuva e nenhuma alma boa me oferece uma carona, então eu vou assim mesmo desviando das poças, mas no caminho rola uma trégua e eu chego no ponto com dinheiro a menos porque na correria caíram umas moedas, então eu acendo um cigarro e fumo pensando no xaveco que vou dar na cobradora pra ela me deixar ir embora, mas acaba que eu só jogo uns trocados na mão dela, e olho com aquela cara de fodido tipo “isso é tudo que eu tenho, põe na conta do chefe” e ela entende e me deixa passar.

Eu me sento na janela, observo os carros, penso sobre onde todos estão indo, ou sobre onde eles pensam que vão, e pra onde eu vou, se vai ter alguém esperando por mim, o clandestino, mas na viagem toda o telefone nem se mexe, as pessoas descem do Ônibus uma a uma, em silêncio, que nem chega perto do meu grande silêncio sorumbático vibrante que espera um bom motivo pra gritar e se desfazer, mas é só mais uma segunda como qualquer outra, e eu odeio segundas e no final das contas eu agradeço a Deus no banho – eu não vou à igreja - por ter sobrevivido a mais uma dessas e o Mundo segue seu giro, ela deve estar debaixo das cobertas quentinhas do seu quarto de onde eu quero fugir quantas vezes forem preciso, talvez pensando em mim, ou simplesmente à procura de uma receita de choconhaque na internet.

Então eu deito e apago e sonho com rockstars mortos há décadas.