A televisão portátil.

Foi a grande e gratíssima surpresa daquele ano! Mas eu não me lembro que ano era. Provavelmente início da década 70. Cheguei da escola – eu estava em casa ou na escola, graças a Deus! E o sorriso do meu pai era escancarado.

Era difícil entender! Eu nasci e cresci vendo com amargura o meu pai sofrendo como ninguém pelas dores lancinantes das suas úlceras. Nada me era mais aterrador do que vê-lo ali, deitado, invariavelmente de pijama. O barulho característico que se apresentava na bolsa de água quente ainda hoje me provoca calafrios. Um misto de angústia, impotência. Um gosto de fel que mostrava que o meu pai era diferente de todos os que eu conhecia. Sempre deitado, feição grave, aparência de gosto amargo na boca, olhar distante, a bolsa sobre o estômago... o rádio ligado no futebol... que na realidade ele não ouvia. Deixava-o ali, ligado como um distante companheiro a querer contar alguma novidade.

Naquele sobrado – a primeira casa que o meu pai conseguiu comprar – acontecia de tudo e nada ao mesmo tempo. O nada era o contato com um mundo de dor e quase resignação. Tudo cinza, sem flor. E o tudo era o impulso que me dava para ser diferente, para tentar caminhar... e caminhei tanto que a dor nas pernas passou a ser minha companheira de todas as horas. Eu caminhava numa rapidez surpreendente, como que para fugir de tudo aquilo, com toda a pressa do mundo e construir um espaço de primavera, ah!!! essa encantadora estação que cheira a paraíso solenemente ensolarado e com os bem-te-vis em festa.

Mas, naquele diz... alguma coisa havia acontecido! Curiosa, ainda com o uniforme do colégio, eu olhava incrédula e interrogativa. O meu pai não falou nada, se colocando no segundo plano, sentado numa cadeira da cozinha, com o olhar brilhante e isso, para mim, era desconhecido. A minha mãe tomou a iniciativa e disse: “conta logo, Nelson”. E lá veio a boa notícia : “o papai ganhou uma televisão portátil”.

Parece que foi um sorteio na empresa em que o meu pai trabalhava, alguma coisa de final de ano, eu não sei bem, mas o melhor de tudo foi o brilho no olhar que o seu Nelson conseguiu exibir. Tamanha raridade se tornaria, para mim, inesquecível e alentadora. Eu nunca tive o materialismo nas veias e o que mais me interessava era ver as pessoas felizes, equilibradas e vivas, intensamente vivas.

Era pequena e de cor creme: Televisão Baby Empire... e fomos assistir. Tínhamos uma - provavelmente Philco – na sala e um segundo aparelho era um luxo naquele tempo.

Apesar de todas as dores, de todos os sonhos que se perderam, das intermináveis noites de angústia em que o pai não melhorava nunca, das crises existenciais que também se repetiam e se agigantavam, do cinza nas almas , dos corações espatifados e tantas vezes ultrajados pelas promessas não cumpridas, a televisão portátil fez o olhar do meu pai brilhar quando eu jamais pensei que isso fosse possível.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 05/06/2012
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