Calça velha

Eu ainda me lembro: nos anos 70 uma propaganda musicada mexia profundamente com o imaginário, com os cantos e encantos da juventude: ” liberdade é uma calça velha, azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser... não usa quem não quer”. E o anúncio continuava afirmando uma outra inovação cheia de ineditismo :”desbota e perde o vinco”.

O sonho da calça velha batia de frente com o padrão formal do homem engravatado, sisudo, sem criatividade e de humor inibido. Era uma afronta social, à rigidez dos costumes, a todas as formas de tradicionalismo , de obediência e submissão. A calça azul e desbotada era o retrato inconteste de vida urgente, de se tecer a primavera com as próprias mãos, na sua absoluta explosão de cores, com iluminação, ousadia, garra e graça. Era a hora do basta! Radicalmente chega! Era necessário um novo tempo, destemido, capaz de aguçar os sentimentos com toda a intensidade e calor que só o jovem sabe dizer.

Eu sempre tive cuidado com as minhas calças velhas. Era como se elas não pudessem acabar, porque, junto delas, algum sonho poderia estar a caminho do velório e isso seria insuportável demais para um coração carregado de sensibilidade e tão cheio de saudosismo. Nunca nostalgia.

Eu descobri de pronto que a calça velha poderia ajudar imensamente no processo da conquista da liberdade. E mais: pude descobrir agora, com mais de meio século de existência, que o sabor da liberdade é indizível. A alma voa porque os pés têm asas e a gente passa a enxergar o mundo em várias dimensões e sempre com cara de felicidade, com um sorriso que tem preguiça de abandonar os lábios.

Sensação de dever cumprido depois de 35 anos de trabalho, sendo três décadas em sala de aula. Não é possível descrever essa atividade profissional. Uma responsabilidade infinita sobre a vida de jovens que também sonham, mas diferente da posse da calça velha azul e desbotada. A responsabilidade eterna por não errar – e se erra muito e uns tantos milhões de erros vêm pelo cansaço. Planos de aula, programas, planejamentos , reuniões, atendimento aos pais, palestras, provas, trabalhos, seminários, atualização constante ... tudo ao mesmo tempo, com a cobrança da perfeição e negação do cansaço. E, além disso, existe um sem-número de alunos problemáticos, o que opta por dormir, o outro escolhe debochar, o outro, enganar... uns poucos a se comprometer verdadeiramente. Tem o pai que compreende e contribui. Tem o outro que aparece só para mostrar que não é ausente . Uma patologia sem conta produzida em escala industrial, fabricada pela cobrança constante e neurótica, impossível e intolerável para qualquer ser vivente.

Agora chega! Consegui me ver gente, tornar-me pessoa com vontade própria, sem a obrigatoriedade de a toda hora compreender e perdoar e com possibilidades infinitas de erro e acerto. Com horário de trabalho apropriado para uma pessoa normal.

Há uma década eu vinha constuindo, no imaginário, esse momento: abri meu consultório de terapias naturais, ofereço preços especiais para os professores, meus iguais. E isso por um misto de compreensão e solidariedade pela causa eterna de doação. Pratico tai-chi e me equilibro, encontrando finalmente meu eixo e não apenas valorizando o centro do outro. Há trinta anos sonhava praticar essa arte milenar ... e não tinha tempo. Estou no caminho do resgate cultural dos antepassados e produzo peças cerâmicas. Tudo ainda é início, mas com uma determinação incontestável. E vou além, muito além, na arte de viver em paz pela consciência do dever cumprido...

A liberdade se define com toda a iluminação e certeza quando se assume que a responsabiliade foi exercitada no cotidiano de umas tantas décadas em meio a pernas doloridas, encantos e desencantos. Alguns dias com o choro das lancinantes dores das cólicas renais. Outros dias, com crises de hipertensão e as varizes ganhando espaço pelas pernas.

Mas a alma não foi pequena e tudo isso valeu a pena porque recebi como recompensa muitos olhares com brilho lindo, agradecimentos em forma de gestos, cartas, lembranças, abraços. Recebi carinho, telefonemas, e-mails com emoções e respeito.

Sou grata infinitamente a todos, de coração inteiro. E peço desculpas sinceras para aqueles que não corrigi, que deixei que se enganassem por meio da agressividade e do deboche. Me calei pelo stress extremo. Não devia. Desculpe-me.

Mas agora o tempo é meu, para eu dispor da vida com outra bagagem de sonhos e esperanças, numa dimensão maior, dentro da mais incrível e bela possibilidade que a vida nos dá: viver em paz.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 09/06/2012
Reeditado em 10/06/2012
Código do texto: T3715187