PORTO: UM CANTO DE CAIS

PORTO: UM CANTO DE CAIS

Rangel Alves da Costa*

Nunca uma música traduziu tanto a obra amadiana como a belíssima “Porto”, de autoria de Dori Caymmi, presente na trilha sonora da novela Gabriela, de 1975, e naquela oportunidade divinamente interpretada pelo grupo MPB4.

Nas primeiras chamadas (teaser) da nova adaptação do romance de Jorge Amado para a televisão, também na Rede Globo (de autoria de Walcyr Carrasco), ela era ouvida ao fundo, bem mansinha e leve, num canto de voz de porto, enquanto surgia na tela a nova Gabriela, na beleza de Juliana Paes.

Não há letra, poema, palavra dita pra ser ouvida, versos rimando um amor, um percurso, uma dor. Apenas a música instrumental acompanhada de um leve cantar murmurante e descompassado, assim como as águas do mar vão chegando de mansinho e se faz barulho ao rebentar na areia.

Suavemente, bem distante, bem lá no fundo das águas, se ouve em tom inebriante: “iaiê, iaiê, oni, onâ, iaiê, iaiê, oni, onâ, lele-ô, ananayô, ananayô, oni, onã, ananayô, oni, onã...”. E tudo navegando em meio ao violão, a flauta, ao chocalho, a percussão, além das vozes inconfundíveis dos integrantes do MPB4. Dori Caymmi também interpreta sua canção, mas com um vozeirão que afasta a singeleza cativante da melodia.

Como tema geral da novela, pontuou as aventuras e desventuras da inocente e bela Gabriela, do seu tão apaixonado Nacib, da libertária Malvina, da enamorada Jerusa, do opositor e romântico Mundinho Falcão, do mulherengo Tonico Bastos, da dona de bordel Maria Machadão, da prostituta Zarolha, e dos Coronéis Ramiro Bastos, Melk Tavares, Coriolano, Amâncio Leal e Jesuíno Mendonça.

Subindo ou descendo as ladeiras de Ilhéus, mostrando as distâncias das plantações cacaueiras, passando defronte ao Bataclan, enveredando pelas estradas e veredas dos latifúndios e casarões dos coronéis, cobra sinuosa apenas se admirando dos pés descalços da bela mocinha. Eis a música cantando o percurso do povo baiano colonizando suas vidas e território, abrindo fronteiras e trazendo a riqueza e a dor.

Ao compô-la, talvez Dori Caymmi, quase da parentela de Jorge Amado, trouxesse toda a essência da obra do amigo para a partitura, para as cordas de seu violão, para a flauta que apita o mesmo som da embarcação aportando no recôncavo, no cais da Bahia, em todos os cais. Daí sua leveza, seu ondeado, seu navegar murmurante até despontar perante os olhos da moça aflita que espera seu amor de lenço na mão.

Melodia que lembra o tão amado Jorge e reflete a Bahia, e nos dois a luta e os amores de um povo em meio aos ciúmes, desfeitas, disputas sangrentas, tocaias, mortes jaguncistas, corações perdoados, boêmios inveterados, prostitutas de colo de coronel, uma gente festeira e faceira que procura viver para fugir do sofrer.

Mas também melodia do barco, da pequena ou grande embarcação, cortando as águas e carregando o cacau, a bebida, os cestos de frutas, as encomendas importadas para os coronéis, os tecidos brilhentos para enfeitar gente feia, os temperos, tudo que vai de lado a outro, de cais a cais, de porto a porto. E quando sai a embarcação, quando ela se distancia e vai sumindo bem longe é como se a melodia existisse por si mesma.

Por isso mesmo Porto não é só uma melodia que novamente estará no remake de Gabriela, mas sim a essência visual da história, contando em acordes, numa perfeita visualização, os passos da bela morena agrestina caminhando de trouxa na mão em busca da sorte em Ilhéus. E ali a flor se misturando aos frutos do mercado, aos olhares que não se cansam em mirar. E depois a saga, a sina, o destino de um povo numa trama de aflitiva beleza.

Ao lado de Alegre Menina - de autoria de Jorge Amado e Dori Caymmi, e interpretada por Djavan -, Porto é romance, é a própria trama musicada. Basta ouvi-la e fechar os olhos. E logo o barco ancorando no porto, logo o passo pelo recôncavo, logo a morena brejeira encantando a vida, subjugando coronéis, trazendo uma receita de amor para o nosso deleite.

Poeta e cronista

e-mail: rac3478@hotmail.com

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