Construção, de Martha Medeiros na Revista O Globo, 17 de junho de 2012

Quem não conhece o trabalho do poeta e escritor Fabrício Carpinejar está em tempo. Abro esta crônica com uma citação extraída da ótima entrevista que ele deu para a revista “Joyce Pascowitch”: “O inicio da paixão é estratosférico, as pessoas não param quietas exibindo tudo que podem fazer. Depois pas­sam a confessar o que realmente querem. A paixão é mentir tudo o que você não é. O amor é começar a dizer a verdade.”
  É mais ou menos isso. No começo, a se­dução é despudorada, inclui, não diria men­tiras, mas um esforço de conquista, uma demonstração quase acrobática de entusias­mo, necessidade de estar sempre junto, de falarem-se várias vezes por dia, de transar dia sim, outro também. A paixão nos aparta da realidade, é um período em que criamos um universo paralelo, é uma festa a dois em que, lógico, há sustos, brigas, desacordos, mas tudo na tentativa de se preparar para algo muito maior. O amor.
  É aí que a cobra fuma. A paixão é para todos, o amor é para poucos.
  Paixão é estágio, amor é profissionalização. Paixão é para ser sentida; o amor, além de ser sentido, precisa ser pensado. Por isso tem menos prestígio que a paixão, pois parece burocrático, um sentimento adulto demais, e quem quer deixar de ser adolescente?
  A paixão não dura, só o amor pode ser eterno. Claro que alguns casais conseguem atingir o sublime amarem-se apaixonadamente a vida inteira, sem distinção das duas “eras” senti­mentais. Mas, para a maioria, chega o momento em que o êxtase dá lugar a uma relação mais calma, menos tórrida, quando as fantasias são substituídas pela realidade: afinal, o que se construiu durante aquele frenesi do início? Uma estrutura sólida ou um castelo de areia?
  Quando a paixão e o sexo perdem a in­tensidade é que aparecem os outros pilares que sustentam a história caso eles existam. O que alicerça de fato um relacionamento são as afinidades (não podem ser raras), as visões de mundo (não podem ser radicalmente opos­tas), a cumplicidade (o entendimento tem que ser quase telepático), a parceria (dois so­litários não formam um casal), a alegria do compartilhamento (um não pode ser o inferno do outro), a admiração mútua (críticas não podem ser mais frequentes que elogios) e, principalmente, a amizade (sem boas con­versas, não há futuro). Compatibilidade plena é delírio, não existe, mas o amor requer ao menos uns 65% de consistência, senão o castelo vem abaixo.
  O grande desafio dos casais é quando começa a migração do namoro para algo mais perene, que não precisa ser oficializado ou ter a obri­gação de durar para sempre, mas que já não se permite ser frágil. Claro que todos querem se apaixonar, não há momento da vida mais vi­brante. Mas que as “mentirinhas” sedutoras lá do começo tenham a sorte de evoluir até se transformarem em verdades inabaláveis.
 
Martha Medeiros
Enviado por Germino da Terra em 18/06/2012
Código do texto: T3730327
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