Morta-viva

Fiz tantas observações corriqueiras. Fiz tantas angulações verdadeiras. E foram tantas exceções justiceiras... Loucuras de um ente em estado de morte. De quem enfrenta a vida como enfrenta a sorte e que traz, toda abatida, a esperança de seu consorte. Não vou me ater às jornadas. Estou fatigada pela caminhada. Quero é o prumo dianteiro, que de dentro da espingarda transforma-se em via do coveiro. Estou em êxtase. Acordada da vida pelo sono da fantasia. Distante da realidade que todo dia alumia. E vivendo a incerteza do que me espera em covardia. Não sei mais o que quero. Nem se quero alguma coisa. Tudo o que eu julgava enfadonho apossou-se de minha alma. Nada de letras. Nada de estrelas. Nada de emoções. Sentimentos vagos no turbilhão do passado. Morto. Vivo. Acabado.

Estou olhando o escuro. Agora tudo é tranquilo. O silêncio incomoda o barulho. O barulho ausentou-se. Viajou para longe da jornada. Está em via retirante, longa estrada destituída de coragem. O pouco que resta não faz diferença. Pernas bambas, sentimentos confusos, estâncias esquecidas. O sopro do vento em minha nuca. Lembrança última daquilo que foi vida. Queria que o vento passasse.

De repente, dou um passo em direção à janela. O vento morno que entra não refresca, antes embrutece as mãos que tocam o vidro sujo. Estou encurralada pela tirania do que poderia ter sido. Tão longe teria ido. Tão perto trancafiada. Opções ermas da bruta investida. Vida desanimada.

A paisagem lá fora é seca e amarela. Tão suave que se perde na justeza da visagem: seca, árida, pobre de imagem. Não sinto o aroma do jasmineiro. Nem vejo as cores das árvores. Não existe nada. É só um papel amarelado pelo tempo.

Sinto a boca seca. Meus passos cambaleantes rumam sem pisar em nada. O som da água no copo entorpece meus sentidos. A água transborda, molha minhas mãos. O toque frio faz estalar minha língua. Umedeço a calada garganta. Arrasto-me para a varanda.

Sinto algo estranho escorrendo de meus dedos. Olho assustada. Vejo pequenos lances de minha vida desmantelada. Fecho meu cenho e tento prender esses fragmentos de mim. Eles continuam a se ir. Sento-me na cadeira de balanço, recosto minha cabeça saturada. Um forte estalo se faz ouvir em meu peito. Meu coração luta desesperado para bombear sangue por mais alguns instantes. Instantes suficientes para o arrependimento que não vem. Fim da jornada.