Papai, amanhã tem circo!

Antes mesmo de ler o que estava escrito no pedaço de papel que o filho lhe mostrava, Ramon sabia do que se tratava. Aquele textinho impresso em papel barato era um dos maiores terrores dos pais que aceitam se sacrificar pelos filhos só até certo ponto, que pensam que há diversões infantis educativas que a moral da paternidade deveria deixar como opcionais, desobrigando-os de se sentirem culpados ao dizerem NÃO aos seus rebentos. E Ramon sabia que aquele papel era uma dessas coisas, fato confirmado pelo filho de três anos que, balançando o ingresso e pulando de alegria, disse: “Papai, amanhã tem circo! A gente vai, não é? Nem tem que pagar!”.

“Pronto. Então vamos ao circo... Mais essa agora...”, pensou Ramon mal-humorado, sentindo um frio na espinha, daqueles que gelam até a alma.

Não, ele não tinha nada contra circos, muito pelo contrário, era até fã da arte circense; mas tinha verdadeiro horror daquele tipo de circo em particular, que chegava à sua cidade todos os anos e levantava lona sempre no mesmo terreno baldio: uma várzea cortada por um dos ribeirões mais poluídos do mundo, com seu cheiro de esgoto e carniça quase palpável no ar.

E foi para lá que a família de Ramon se dirigiu naquela bela tarde de sábado, levando os dois ingressos grátis que os filhos tinham ganhado na escola.

Ao comprar os dois ingressos de adulto (exigência para acompanhar as duas crianças) e entrar no circo, pelo menos um alívio Ramon sentiu: o cheiro do ribeirão tinha ficado do lado de fora.

Procurando um lugar para se sentarem de forma que pudessem ter uma boa visão do picadeiro, Ramon e a esposa concluíram que qualquer cadeira que eles escolhessem, na frente, atrás ou nos lados, teria no mínimo dois postes de sustentação atravessando o palco e atrapalhando o espectador. Por isso a família se sentou onde parecia ser menor a chance dos palhaços pegarem Ramon para ajudante (como da última vez), obrigando-o a se levantar e a interagir com eles como um verdadeiro imbecil.

Sentaram-se e logo ouviram o animado apresentador anunciar: “Em um minuto começará o espetáculo!”. Ramon, aproveitando a passagem de um vendedor de algodão doce, perguntou-lhe: “Por favor, senhor, o espetáculo tem previsão de durar quanto tempo?”. “Mais ou menos uma hora e quinze minutos”, respondeu o homem, que mais tarde seria visto dando saltos mortais no trapézio e vendendo pele de porco frita para a platéia.

“Calma, Ramon”, disse para si mesmo o pai já desesperado, “não sofra agora o que você deverá sofrer no momento certo. Lembre-se do que dizia a sua avó: ‘Cada sofrimento no seu tempo’”.

Para resumir, vou dividir a agonia de Ramon em três etapas – três momentos de maior intensidade –, pois, se não for assim, delongaremos demais a narrativa com os pequenos horrores de cada minuto da apresentação, o que certamente será cansativo para você, leitor (se é que já não se cansou).

Um minuto antes do início da primeira etapa de seu calvário, Ramon tinha já se acostumado com a ideia reconfortante de que alguma coisa tinha acontecido com os palhaços para eles não terem dado ainda o ar de sua graça (ou da falta dela) – uma disenteria, uma ressaca brava ou coisa parecida – quando, de repente, caminhando já o espetáculo para o final de sua primeira parte, irrompeu no picadeiro a trupe com suas palhaçadas de dar dó, que Ramon aguentou firme, sem reclamar, como quem suporta estoicamente uma tortura à base de fogo e agulhas.

Mas como aquilo não acabava nunca, Ramon resolveu ir comprar pipoca para os filhos fora da tenda, no que parecia ser uma espécie de hall de entrada, local onde o dono do circo certamente fazia valer a pena manter de pé o seu empreendimento (graças às barracas vendendo batata frita, pipoca, maçã do amor, algodão doce, chocolates e refrigerantes com lucro de 500% ou mais). Comprou três pipocas e voltou lentamente para a sua cadeira, torcendo para que os palhaços já tivessem ido embora. Com alívio, Ramon viu que não havia mais nada no picadeiro.

Mas logo veio a segunda etapa do seu sofrimento: ter que assistir à apresentação do homem do monociclo e de sua companheira, ele enfiado numa roupa de lycra cor-de-rosa que, para desespero de Ramon, marcava escandalosamente a sua genitália, e ela... Meu Deus... Ramon não tinha nada contra gordinhas, até gostava mais delas do que das magras, mas aquela mulher tinha perdido completamente o senso do ridículo. Vendo-a no palco ao lado de seu companheiro, Ramon a imaginava nos bastidores, antes da apresentação, revirando o baú de maiôs até encontrar o menor de todos: uma peça cor-de-rosa brilhante que realçava seus belos pneuzinhos e se adentrava, penetrava, atolava com força em seu corpo por entre as nádegas, fazendo-a se equilibrar com dificuldade nos saltos e a caminhar como um robô desengonçado.

Com vergonha de enfiar a cara entre as pernas ou de fingir um desmaio, Ramon teve que assistir à apresentação até o final. Se eu estivesse lá, sabendo dos seus cinco graus de miopia, eu teria sugerido a ele que simplesmente retirasse os óculos, mas o coitado, de tão perturbado, nem atinou para isso.

Finalmente veio o intervalo e Ramon pôde respirar um pouco, indiferente ao vai-e-vem dos ambulantes vendendo comida superfaturada, balões e bolinhas pisca-pisca por entre as fileiras de pais desesperados e filhos gritando “compra, papai, compra”.

Na segunda e última parte do espetáculo, pelo menos um alívio para Ramon: o fim da música de intervalo (uma coletânea de sertanejos e bate-estacas de arrebentar os tímpanos de qualquer um). Mas sua paz durou pouco, pois lá estavam eles de volta: os palhaços. Vendo-os de novo cambaleando para o centro do circo, Ramon sentiu uma tonteira; o picadeiro começou a girar; ele não via nada, só ouvia a confusão de gemidos, gritos e gargalhadas emitidos pela trupe, frases como “seu idiota, você errou”, “seu burro, me dá isso aqui”, “se eu morrer você me paga”, “ai, se eu te pego, ai, ai”, “delícia, delícia, assim você me mata”, e por aí afora.

E assim terminou a terceira etapa do seu sofrimento, marcada por tonteiras, taquicardia, enjôo e zumbido no ouvido. Nem viu direito os trapezistas e seus saltos mortais – que de mortais mesmo só tinham o tédio e a náusea que davam nos espectadores –, mantendo o olhar fixo na rede de proteção, um trançado de fios grossos que mais parecia uma daquelas armadilhas de corda para pegar onça nos filmes antigos de Tarzã, de tão remendada e desfiada que estava.

Fim do espetáculo. Já do lado de fora, Ramon respirou fundo o cheiro de esgoto e de carniça do ribeirão como se fosse perfume francês, feliz por ter vencido mais uma prova em sua vida; e mais feliz ainda ficou quando percebeu que os filhos não tinham gostado, o que certamente lhe daria uma boa justificativa para não repetir a dose no ano que vem.

P.S.: Em sua maior parte, essa é uma história de ficção. Quero acreditar que não exista circo tão ruim quanto o descrito acima, nem um pai tão mal-humorado quanto Ramon.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 02/07/2012
Código do texto: T3756481
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