Leite Paulista

Todas as manhãs eu saía do nosso sobrado no bairro do Cambuci para comprar o leite no mercadinho da esquina. O pedido, invariavelmente, era o mesmo: dois litros de leite e cinco pãezinhos. Eu era adolescente e já tinha um grande prazer em dar alguma ajuda nas tarefas da casa. Um jeito, muito modesto, de me mostrar comprometida, responsável, participante do funcionamento da família. Eu já ia ao mercadinho uniformizada para as aulas do dia: saia cinza, meias três-quarto brancas, sapatos pretos. O blusão, azul escuro e com os punhos vermelhos e uma lista branca, me dava ares de algum valor. Principalmente com o distintivo, apresentando um colégio Marista.

Mas aquela garrafa de leite, com os dizeres “Da fazenda para sua casa”, “não precisa ferver””, uma menininha sorridente com o cabelinho penteado na sua maria-chiquinha; do outro lado, a cara de uma simpática vaca malhada representava uma parte viva e certa do nosso cotidiano , de um tempo difícil mas que eu me achava decidida a mudar o mundo, arquitetar um bom futuro e que assumir responsabilidades era algo muito bom, interessante e que não provocava medo e nem ansiedade. A vida seria assim, com compromisso, disciplina, rotina e caminhada.

Na boca da garrafa do Leite Paulista – detesto essa expressão! Até parece que garrafa tem boca... mas, na boca da garrafa havia aquele lacre de alumínio grosso, que deveria ser apertado na parte central para dar condições de retirada do líquido alvo e ainda um pouco espesso e que, para o meu pai, com as suas inúmeras úlceras, era fundamental para aplacar-lhe as dores lancinantes.

E aí veio a tecnologia: o leite em saquinho. Eu não gostei muito da idéia não, mas as garrafas saíram radicalmente de cena em nome da inovação e praticidade. Nós, mulheres, já no final dos anos 60, trabalhando, lutando para cursar uma faculdade, fazendo profissão e iniciando carreira precisávamos mesmo de mais praticidade. Imaginou voltar para casa depois de uma jornada de trabalho e ainda ter que ir buscar a garrafa para poder comprar o leite ? Nem pensar. Era só o que faltava! Os antigos litros de leite caíram no esquecimento, afinal, viraram coisas do passado, um trambolho para um tempo que exigia mais rapidez, competição e eficiência.

Dezembro de 1982 – casei-me com um rapaz interessantíssimo, capaz de respeitar a minha paixão pela história, o respeito ao passado, os valores tradicionais e sempre me estimulando a estudar mais. Comprava comigo muitos livros, a maioria diferente dos seus interesses profissionais . Comprava até em excesso ... e fomos nos respeitando mesmo nos momentos mais difíceis, mais agudos de crises financeiras. E economizar, saber fazer as contas, fazer escolhas passou a ser rotina.

Numa tarde de domingo, depois daquele extasiante macarrão com frango de almoço na casa dos meus pais , voltamos para a nossa residência na Vila Sônia. Nas despedidas, o meu pai , sorridente, levantou-se e tirou do bolso uma nota e me ofertou. Agradeci, constrangida. Mas resolvemos parar no caminho da volta para casa. Destino: a feira de antiguidade no vão livre do MASP. Essa feira ainda era novidade, sempre movimentada, colorida, cheia de entendidos, saudosistas, curiosos, “porra-loucas”. .. São Paulo se mescla em todo lugar, não tem jeito. Sempre fascinante e incompleta, mista e inquietante ... e nós ali, de olhos brilhantes e interessados, naquela pindaíba de recém-casados e com uma dívida grande nas costas por conta de um apartamento recém adquirido no bairro da Aclimação.

Estava claro: não compraríamos nada, para variar. Tudo era caro para nós naquele momento... o jeito era se conformar e tudo caminharia no seu tempo certo: quando melhorássemos de vida, faríamos as compras, resolveríamos as nossas vontades, passearíamos mais...

Até que avistamos um litro de Leite Paulista. Exuberante na sua solidão, lá estava ele em meio a outros objetos convidativos na sua história, falando pelo seu tempo, contando causos, trazendo alguma novidade do tempo que não era mais. Aí não teve jeito. Uma inquietação saudável, faceira, contagiante. Parece que deu até coceiras na alma, nas saudades, nas lembranças dos outros carnavais.

O Nelson disse: “vamos levar. Eu compro prá você”. Pagou o litro com Credicard. O valor do litro era exatamente igual ao valor que o meu pai havia me dado.

Entusiasmada, na semana seguinte, eu contei, satisfeita e orgulhosa a proeza prá mãe.

Triste sina: levei uma bronca daquelas! “O teu pai te dá dinheiro sem poder e você me compra uma garrafa velha????”

Depois dessa, continuei a resolver as minhas saudades e os meus sonhos... só que na surdina.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 06/07/2012
Reeditado em 07/07/2012
Código do texto: T3764355