Livro velho

Brasileiro tende ao descarte. Total. Descartamos tudo aquilo que já não nos parece útil. Sejam objetos, roupas, livros, recordações ou pessoas. Sem peso na consciência. Nem nos perguntamos se poderíamos dar outro fim à história. Ansiamos apenas pelo livramento do incômodo.

Outro dia, mexendo na poeira do passado de minhas estantes, encontrei alguns livros arcaicos. Foram publicados entre 1966 e 1968. Com certeza foram escritos antes. Não pertencem a literatura clássica, são apenas resquícios de comportamentos passados: “O môço e seus problemas”; A môça e seus problemas”. Nem ao menos o nome do autor. Depois, em pesquisa, descobri pertencerem a Haroldo Shryock. Fiz um pré julgamento das obras apenas pelos títulos e pelas cores das capas duras: azul e rosa. E deixei de lado.

Algum tempo depois, uma amiga sentou-se ao meu lado e, talvez pela falta do que conversarmos, pegou um dos livros e começou a folheá-lo. Ela observou uma figura e riu. Logo depois encontrou uma passagem interessante, que julgou totalmente avessa aos dias de hoje: “O jovem que teve a desventura de desenvolver o hábito da masturbação sente-se constantemente alquebrado e fatigado. Ele adota uma atitude atoleimada simplesmente porque não pode dispor de energia suficiente para permanecer alerta. O estudo não lhe agrada. Assim, seu desenvolvimento mental se retarda”.

E fez o comentário que me provocou o estalo da curiosidade: “Se nossos alunos lessem isso hoje, com certeza morreriam de rir”.

Peguei um livro e comecei a folheá-lo também. E fazíamos comentários acerca da época, do estilo, da ortografia, da caduquice dos pensamentos. E aquilo foi dando uma coceira, uma vontade enorme de voltar àquele passado de nossos pais ou avós. Acabei devorando os dois livros em poucas horas.

Interessante foi encontrar entre as páginas amarelas e manchadas um passado ainda vivo: bilhete de passagem de ônibus, número de telefone, nomes de pessoas e até mesmo um papelzinho escrito “o êmprego é meu”. Devolvi tudo às páginas dos livros. Queria que aquele passado continuasse vivo.

Imaginei quantas moças e moços foram guiados, até mesmo educados sobre a filosofia de suas páginas. E como aquilo repercutiria numa sala de aula hoje. Não tive dúvidas: criei um projeto para minhas aulas: “Leitura Antiga – Anos 60 e 70. O que mudou?”. Além da leitura dos livros, foram feitas pesquisas da época, inclusive com pessoas que estiveram lá, que viram tudo isso acontecer e acompanharam as mudanças. Foi extraordinário! Um verdadeiro resgate histórico e cultural.

Agora, com os livros nas mãos, protegidos do descarte, imagino quanta coisa boa foi parar no lixo da indiferença. Quanto de nossa história já foi descartado pela simples falta de capacidade de reciclagem. Ou de vontade de agregar o velho ao novo. Fazemos isso o tempo todo. Que dificuldade de encontrarmos uma calça boca de sino da época. Ninguém guarda coisa velha.

Acabei me sentindo em processo de descarte. Logo, logo, todo meu conhecimento não terá mais validade. Será substituído por uma geração sem objetivos e sem raízes com o passado. Eu serei como esse livro velho. E talvez não encontre ninguém disposto a um simples folhear de páginas.