A desgraça justificadora

Morava em Novo Hamburgo, no Rio Grande e decidira

surprender-nos com uma visita. No caminho, ao tentar frear, a

perna não obedeceu. Em minutos, as duas paralisaram: câncer no

cérebro. Maligno. Operado, meses depois, veio vern-nos e rimos

um bocado com suas histórias sobre a cirurgia, a internação e as

reações. Eram risadas saudáveis e que nos faziam, sempre de

novo, acreditar na vida, mas havia dias em que o surpreendia de

pijama na hora do almoço, a mostrar a todos que estava doente.

Combinamos que a doença seria enfrentada cara a cara e que

ela não mandaria no humor dele. Pelo tempo em que esteve

hospedado lá em casa, conseguimos.

Continuou o tratamento no Rio Grande. As internações se

sucediam e, com o tempo, a doença ganhou força. Piora repentina,

nos preparávamos para ir até lá. Ligou-me perto da meia-noite, do

hospital: “Agora, acho que vou, não tem mais jeito”. “Aguenta, ainda

temos muito do que conversar e dar risada”. Riu. Minutos depois,

morreu.. Eu poderia ter chorado, pedido que se arrependesse de

seus erros para ir para o céu, dito que ele precisava se consolar,

mas não era o que sentia. Ele entendeu, tenho certeza.

Quando Mariza adoeceu, as estruturas sofreram um

terremoto, porém, muito mais por iniciativa e força dela do que

minha, confesso, enfrentamos a doença como apenas uma

parte de nossa vida, não toda ela, fazendo os tratamentos

necessários, pesquisando e indo atrás, mas cuidando de nós como

sempre cuidamos, enfrentando as dificuldades com os ombros

consoladores dos dois e dos muitos amigos. E a dor veio com sopro

de carinho e muita solidariedade.

Há pessoas que, parece, só justificam sua existência pela

desgraça. Encontram-se e não conseguem pronunciar um nome

sem anexar um rol de doenças, acidentes, azares, tristezas. Outras,

desenvolvem uma espécie de síndorme de indispensabilidade.

Essas, agindo de boa fé, interferem, decidem, se envolvem tanto

com os problemas dos outros que, sem se darem conta, chegam

a oprimir. Agindo assim, tornam-se realmente indispensáveis e

torturam-se com a obsessão em servir. Esquecem de curtir a vida,

sem saber que a alegria é o melhor exemplo e a maior ajuda que

podem dar.